terça-feira, 7 de maio de 2013

Autobiografia de Irundy Dias ( p 23 )



Na  sexta feira  ,no sábado e no domingo à noite, quando não aparecia nenhuma programação extra, sempre ficávamos num jardim situado em frente ao Palácio da Aclamação, outrora a residência oficial do Governador do Estado da Bahia e alí ficávamos algumas horas, trocando juras de amor.
Sempre aos sábados, quando voltávamos ao pensionato, Nó ia se recolher, enquanto Pedro Ferraz, Vilobaldo Macedo, Nino e eu, íamos jogar canastra apostando-se um copo de vitamina, onde a dupla perdedora pagaria a despesa total. Muitas vezes, cerca de três horas da madrugada, quando o jogo acabava, descíamos pé ante pé, vagarosamente, as escadas de madeira, pois o rangido dos degraus, poderia incomodar o pessoal que estava dormindo e saíamos até uma lanchonete próxima a Faculdade de Direito, onde tomávamos uma vitamina de frutas.
Nas semanas que Nó não tinha folga e se ainda estivéssemos com um dinheirinho da mesada sobrando, a nossa turma composta por Humbertão(Humberto Carlos Campos Neto), Nino(Clóvis Pereira Junior),Quiquide (Euclides de Souza), raras vezes Gloriano, juntamente comigo, íamos aprender as dançar no Rumba Dancing, que era uma casa noturna, situada à Rua do Tesouro, paralela à Rua Chile. Alí chegávamos às 22 horas e só saíamos no cisco, às 4 horas da matina.  As garotas vindas do Rio de Janeiro e de São Paulo, eram exclusividade daquela Casa e nos ensinavam todos os passos  dos mais variados ritmos.  A noitada funcionava do seguinte modo: ao chegar, subíamos uma escada com mais de trinta degraus e lá no alto havia uma bilheteria, onde comprávamos o ingresso e recebíamos um cartão anexo, que só servia para o uso, nas danças que a pessoa fizesse parte. Dentro do salão, ao fundo havia um local onde um conjunto musical , executava músicas as mais variadas possíveis, durante toda a noite, sem haver nenhum intervalo. É claro, que os músicos se revezavam, nos seu descanso momentâneo. Nas partes laterais do salão, ficavam as mesas, onde se alojavam os homens que ali foram para dançar. Os garçons serviam bebidas e comidas que eram anotadas no seu talão próprio. No centro do salão, ficavam dispostas inúmeras cadeiras, formando um quadrado, com quatro aberturas para dar passagem de ida e volta. As garotas ficavam sentadas esperando quem fosse tirá-las para dançar e guardavam numa pequena bolsa, uma máquina, que perfurava o cartão do parceiro, assim que ele desejasse terminar aquela parte da dança. Ao final da noite, ou seja às quatro horas da madrugada , o conjunto parava de tocar e cada qual ia até o guiché, a fim de pagar a sua conta com os cartões perfurados.
Com a frequência quase constante de nossa parte, aos  poucos fomos ficando conhecidos das garotas e com elas travamos  uma boa amizade, ao ponto de em certas ocasiões, termos um reduzido número de furos em nossos cartões. Não sei ao todo, quantas vezes frequentamos aquele ambiente, por demais sadio. Vou citar, entretanto, dois casos completamente diferentes e que saíram da normalidade.
Naquela noite, o porteiro não foi com a cara de Quiquide e barrou o mesmo, logo na portaria. Decorrida uma meia hora de festa, eis que surgem vários homens de ternos completos, incluídas as próprias gravatas. Sentaram-se numa mesas especialmente reservada para eles.
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Minutos depois, Humbertão, descobriu que um deles, era Presidente do Galícia Esporte Clube, que era uma equipe de futebol, que disputava o Campeonato Baiano de Profissionais. E aí não deu outra. Começamos em coro a cantar o hino oficial do Galícia e dar vivas de parabéns ao Presidente, pela passagem do seu aniversário natalício. Nos momentos que se seguiram, os garçons começaram a trazer garrafas e mais garrafas de cervejas e refrigerantes, acompanhados de pratos de salgadinhos, tornando-se para todos nós uma farra, tão exuberante, que nunca haveríamos de esquecer em tempo algum de nossas vidas. Para completar, tenho a impressão, que as dançarinas foram instruídas a não cobrar pelas danças a que nos propusemos durante o resto da noitada. Como sempre acontecia, saímos do Rumba Dancing na hora em que a orquestra terminou de executar o último número e o que vimos ao descer a escada. O coitado do Quiquide, sentadinho num dos degraus, encostado na parede, cochilando, a nos esperar. Fora barrado na entrada e o jeito foi levá-lo para o pensionato.
Numa outra oportunidade, a festinha estava bem animada, quando lá pelas duas horas da madrugada, um grupo de rapazes, não muito próximo à nossa mesa, começou uma discussão em tons bastante altos, num xingamento, com palavras bem ofensivas entre eles. Em seguida, partiram para agressão, com socos e pontapés, e aí foram derrubando as mesas com copos, garrafas, pratos, num  QUEBRA-QUEBRA  infernal. Daí, a confusão começou a se generalizar, onde garçons correram em direção ao local, para evitar um tumulto maior. As moças gritando, e saindo do salão às pressas. Dirigentes do Rumba Dancing, apareceram no intuito de apartar a briga, evitando também. que devido a gritaria, pudesse despertar a chegada da polícia. Quando então sentimos, que a generalização da briga chegasse até nós, de comum acordo, nos levantamos e saímos do salão correndo, galgando quase num pulo só, a portaria que dava acesso a grande escada, que nos levaria à porta da rua. O CORRE-CORRE foi tão intenso, que só demos conta de pararmos já chegando ao final da Rua Ruy Barbosa, bem perto da Praça Castro Alves. Apesar do susto e da corrida inesperada, no final das contas só tivemos lucro, pois exceto o ingresso, no restante, não gastamos um centavo. Bebidas, comidas, cartões perfurados, nada nos custaram, pois devido a confusão, quem pode escapar daquela briga, ileso, como nós, até hoje, deve ter guardado  na lembrança.  

QUEBRA-QUEBRA: Desordem entre pessoas em que há depredações.

CORRE-CORRE: Correria. Correria desordenada. Tumulto.


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Chegamos ao final do ano letivo de 1953.
Na Faculdade, o dinheiro arrecadado com a rifa do automóvel foi distribuído proporcionalmente à vendagem que cada aluno fez. Como dos 74  alunos ,somente dez foram aprovados em primeira época, combinou-se que a maioria iria se formar em fins de janeiro, logo após os exames de segunda época, que seriam antecipados. Nós, que estávamos completamente livres de qualquer compromisso com a Faculdade, poderíamos escolher, de comum acordo com a Secretaria da Faculdade, o dia da nossa formatura, sem solenidades. Em meados de dezembro, Mamãe chegou a Salvador e foi logo mencionando que Papai não iria comparecer, mas gostaria de comprar o meu anel.
---Seu Dy, vou lhe dar o anel de sua formatura. Você escolhe o tipo e manda gravar o seu nome e a data da formatura.
---A data ainda não sei, mas ouvi dizer que será antes do Natal.
Noélia por sua vez, sem eu saber, pediu dinheiro ao pai dela e me ofereceu uma caneta Parker 51, de tampa dourada (muito em moda na época), mas ficou também no mesmo dilema de Mamãe. Qual a data que seria posta no corpo da caneta?
Com aquele zum zum zum, que sempre precede a escolha da data da formatura, soube, entre os colegas que iriam se formar comigo, que a data mais provável seria, de  uns dois a três dias antes do Natal e assim,   por mim mesmo ,tomei a resolução e mandei gravar meu nome por extenso e a data de 23 de dezembro de 1953.
Como sempre a mesada que Papai enviava era muito curta e sempre arriscava uns palpites no “jogo do bicho”. Às vezes acertava nas dezenas, porém mais AMIÚDE, ganhava nos “grupos”. Na mesma ocasião, tia Edite mandou consertar as duas escadas que ligavam o primeiro ao segundo andar. Era um poeirão medonho e ficávamos com pena de vovô Manta, que com aquela asma renitente, passava maus bocados.
Finalmente o Secretário da Faculdade, colocou o aviso no quadro, informando  que a data da nossa formatura, seria no dia 23 de dezembro, pela manhã, com início às dez horas, Mamãe, tia Edite e eu, fomos até lá e chegada a minha hora, recebi um canudo de cartolina amarrado com uma fitinha fina verde amarelo. Enquanto os outros nove colegas recebiam os seus canudos, tive a curiosidade de olhar a parte interna e vislumbrei que o papel estava totalmente em branco. Era um diploma só  figurado.
Em casa, a comemoração se resumiu a uns bolinhos, com refrigerante da Fratelli Vita.
Dois dias após o Natal , logo pela manhã, quando acordei e comecei as descer as escadas, vi e ouvi os trabalhadores conversando sobre o resultado da Loteria Federal, onde um conhecido deles, havia ganho um boa “bolada”no jogo do bicho.  Apenas , por curiosidade, perguntei qual fora o milhar sorteado no primeiro prêmio. Eles me responderam, que só sabiam do resultado do milhar que fora 1923 e que um conhecido deles havia ganho um bom dinheiro.

AMIÚDE : Repetidas vezes. Frequentemente.

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Não quero me referir ao milhar 1923, mas a dezena, 23 não me saiu da cabeça por muito tempo e até hoje, reparem, ela está presente nos meus escritos. Porque então aquela dezena, ficou assim tão perturbadora? Ora vejam bem: primeiramente escolhi uma data ao acaso, pois sendo antes do dia de Natal 25, mandei gravar o meu nome completo: Irundy Manta Alves Dias e a data que eu escolhi: 23/12/1953, no corpo da caneta Parker e no aro interno do anel de formatura. Em segundo lugar, a minha idade também era 23 anos e para completar, a Secretaria da Faculdade, escolheu justamente o dia 23 para a na nossa formatura sem solenidades. Quando os operários que trabalhavam nas escadas da casa de tia Edite, comentaram sobre o milhar 1923, por esquecimento ou por não ter tido tempo, deixei da ganhar no jogo do bicho, algum dinheiro, com a dita dezena 23.
Antes de regressar a Poções, fui a uma casa comercial, que vendia material odontológico e como também já era conhecido do pessoal, desde o tempo que passei , trabalhando no  Posto Maçônico, as coisas ficaram mais fáceis para mim. Apresentei uma lista de ferramentas, utensílios e medicamentos, para pagar somente depois de quatro meses, sem ter dado entrada de nenhum centavo.
Como Noélia, já estava aqui em Poções, estive com ela, agradecendo primeiramente da caneta que ela me oferecera e nos organizamos a frequentar a festa de Réveillon que se aproximava.
E de fato, quando o dia 31 de dezembro de 1953, chegou finalmente, suspirei aliviado, pois uma etapa de minha estava concluída. Era pensar positivo, para encarar de perto. a vida profissional que se avizinhava e mais ainda, pelo compromisso que mentalmente já encarava na vida de Nó.
Quem apareceu na festa para  a minha surpresa, foi uma irmã de Noélia, por nome Tereza. Parece-me que naquela noite, toda a família resolveu frequentar o Clube Social. Tavinho com a sua esposa Amélia, levaram Jurimar, outra irmã de Nó, que estava de namoricos com o seu primo Vecinho (Elvécio Nápoli), a própria Tereza já citada e a minha querida Nó. Paguei o meu ingresso, sem precisar mais de apresentações, pois já estava sendo conhecido da Diretoria. A festa por sinal, foi muito boa e daquela vez não houve, marcações quando dançávamos o pessoal saiu da festa, quase as quatro horas da manhã. Foi uma noitada muito divertida e aproveitamos muito, como um prêmio pela minha formatura.
Na matinê do dia primeiro de janeiro de 1954, estava mais leve. Não havia mais aquele compromisso em viajar a Salvador, para frequentar as escolas, que desde o tempo de menino me atazanaram o juízo, com aqueles altos e baixos, citados às vezes, com muitos pormenores. A situação agora era outra. O trabalho viria pela frente, mal sabendo eu , do abacaxi que me esperava para certos momentos. Para começar a trabalhar na profissão, Papai adquiriu em mãos de Dr. Plínio, uma cadeira usada do seu gabinete dentário, enquanto ele comprou uma outra, com mais detalhes técnicos e mais aperfeiçoada. Mas, aquilo nunca me desabonou, pois simples como fui em toda a minha  vida , iniciei os atendimentos numa sala da frente da casa, cujas janelas ficavam voltadas para os fundos da parede da Igreja.

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 Para quem estava trabalhando nos serviços odontológicos, nada me desabonou. A dificuldade que senti inicialmente, foi no uso do motor a pedal, pois em Salvador na Faculdade, com energia elétrica direta ,era uma mudança bem radical. Poções, infelizmente, naquela altura dos acontecimentos, não dispunha de energia elétrica durante o dia. Durante as noites, éramos servidos somente das 18 as 24 horas, através de um motor de propriedade do Sr. Braz Labanca, que na maior parte das vezes, deixava a cidade às escuras, com aquelas quebras que sempre aconteciam e que atazanavam o juízo do Sr. Nicola Leto, funcionário do serviço.
À medida que os dias se passavam, Noélia e eu, estávamos pensando na primeira separação por longo tempo, pois ela teria que voltar a Salvador, para concluir o seu curso ginasial. Não sei  se enjoada com a vida escolar de interna nas Mercês, matriculou-se no Colégio Ipiranga, situado  na Rua do Sodré e ficou hospedada num pensionato de uma italianas no largo da Mouraria, próximo a um quartel do Exército. Não precisaria tomar transporte, devido à proximidade do pensionato ao Colégio. Finalmente o dia do seu retorno chegou e ficou aquela sensação de vazio, algo que nunca havia acontecido comigo.
Continuei a atender os meus primeiros clientes, na maior parte, em extrações dentárias e raras restaurações, porque também, a maioria do pessoal proveniente das roças, não acreditava nelas dizendo que em pouco tempo, as restaurações se desprendiam dos dentes. Entretanto, três meses depois, começaram a surgir os clientes para colocar trabalhos protéticos, em sua maioria dentaduras totais. Eram clientes das roças, que haviam feito contratos, para remoção de todas as unidades dentárias, para posterior colocação das referidas dentaduras. Aí, a coisa começou a ficar braba.  Reparem-se só: os clientes chegavam na sexta feira pela manhã, para efetuar a primeira moldagem e queriam as dentaduras prontas até o final da tarde de domingo, porque precisariam voltar às suas residências. Foi uma luta INSANA. Quando o trabalho aumentava, cheguei a dormir muitas vezes, altas horas da madrugada, com o Alladim aceso, a fim de dar conta dos serviços que apareciam.
Uma mania que o povo da roça adquiriu, era o de mandar colocar  pequenas incrustações em ouro , nos interstícios dos dentes postiços das dentaduras. Aquilo, ainda dificultava mais o serviço, embora aumentasse o preço do trabalho protético.
Vale ressaltar naquele período, a figura  PRESTIMOSA de Deusdete Fagundes, que conheci anos atrás e que possuía uma boa prática na confecção dos trabalhos protéticos.Com o auxílio dele, avançamos mais no serviço, porque afinal, eram quatro mãos a desempenhar o papel de duas. Numa determinada sexta feira, eis que surgem em nosso gabinete dentário, dois casais, não residentes em fazendas próximas daqui de Poções e que também não tinham sido meus clientes, desejando colocar sete dentaduras totais, com as célebres incrustações em ouro. Como sempre acontecia, queriam voltar no domingo logo depois do almoço, pois moravam longe e desejavam chegar nas suas roças,  ainda com o dia claro.

INSANA : difícil de fazer, de suportar ou de realizar.(Diz-se do esforço no trabalho).

PRESTIMOSA: aquele ou aquela que gosta de ajudar. Prestativo(a).
 
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Pedi a Mamãe que ficasse conversando com o pessoal, enquanto eu fui a trás de Deusdete a fim de relatar o caso. Ao explicar a situação, Deusdete ponderou os altos e baixos daquela empreitada e me disse com a calma que lhe era peculiar:
---Sete dentaduras, com incrustações a ouro e com dinheiro à vista, não aparecem todo dia e vão nos render um bom dinheiro.
Já retornamos juntos e ao chegar em casa, Mamãe mandara fazer café e o pessoal estava à vontade. Aí, é que foi trabalho duro. Fizemos a primeira moldagem e a tarde partimos para a moldagem definitiva. (Vale salientar também, que os materiais de moldagem daquela época, às vezes vinham com defeito de fabricação). Mas felizmente, o nosso serviço andou rápido, sem nenhum constrangimento. Para encurtar a história, no domingo às três e pouco da tarde, colocamos as dentaduras e todos se mostraram satisfeitos, principalmente as duas madames, que ficaram alguns minutos com os espelhos, reparando o com minucias, todos os detalhes.
O fato é que com parte do dinheiro fui a Salvador saldar uma dívida, que fizera na casa de artigos odontológicos e para surpresa de Nó, fui esperá-la no pensionato, que ficava ´perto do Colégio Central( ex Colégio da Bahia).
Com poucas palavras, Noélia explicou-me, que uma das freiras, apelidada pelas alunas de Irmã cintura fina, era muito observadora e ficava de marcação, todas as vezes, que as meninas recebiam visitas. Assim para evitar problemas, pediu transferência para o Colégio Ipiranga, que no caso, era muito mais próximo do pensionato.
Estávamos percorrendo os primeiros dias de junho e aproveitamos muito bem o final de semana. Sem que ela soubesse e também, nada comentei à respeito, comprei um par de alianças, que guardei comigo vários meses, até que tivesse a oportunidade de pedi-la em casamento.
Voltei a Poções e poucos dias depois, iniciou-se uma nova Copa do Mundo, desta vez sendo realizada na Suiça. Pelas  notícias veiculadas pelos jornais e rádios, a equipe favoritíssima era a da Hungria, que pelos trinos realizados, estava arrasando os adversários. Por sua vez ,a seleção brasileira estava disposta a se REDIMIR, daquele fracasso da Copa de 50, sendo derrotado pelo Uruguai no jogo final , por 2 a1. Com a realização dos primeiros jogos, Hungria e Alemanha que faziam parte do mesmo grupo, classificaram-se facilmente às quartas de final. O interessante é que no confronto entre ambos, a Alemanha colocou em campo o sei time reserva e perdeu de 8 a 3 para a equipe da Hungria, que não estava respeitando ninguém. Enquanto isso, o Brasil também conseguiu passar às quartas de final e por azar pegou logo pela frente a Hungria. Como não tínhamos ainda em Poções, energia elétrica durante o dia, Tavinho, comprou um rádio novinho, movido à bateria de automóvel e convidou-me para acompanhar com ele, os jogos da Copa. O sinal vindo da Europa, não era dos melhores.
REDIMIR: o mesmo que remir . Resgatar.

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Ás vezes, o som era bem audível, mas na maioria do tempo, precisávamos encostar os ouvidos junto ao rádio, para tentar perceber o         que estava sendo transmitido. Quando conseguimos ouvir direito em certo momento, o time da Hungria em menos de cinco minutos, já fizera dois gols no Brasil. Aos poucos, a equipe brasileira chegou até  a equilibrar a partida mas, ao final dos noventa minutos, perdemos por quatro a dois e fomos eliminados da Copa. O Uruguai, que trouxera quase os mesmo jogadores da Copa de 50, conseguiu chegar às semifinais e aí pegou também a Hungria pela frente. Outro placar de quatro a dois para os húngaros.
Naquela altura do campeonato, Nó já havia chegado para as férias do meio do ano e como nunca gostou de futebol, só aparecia para perguntar, quem estava ganhando. Durante os nossos encontros, dizia a ela como estava me saindo na profissão, mas na época, havia aqui em Poções, um colega tão usurário, que parecia querer abraçar a “Deus e o Mundo.” Na minha simplicidade de sempre, ia tocando o barco vagarosamente, mas devido o amor que nutria aos meus pais e à minha querida Nó, dei ouvidos de mercador, aquele antipático colega e fuio me mantendo aqui em Poções.
Dias depois, houve o jogo final da Copa de 1954 e quando todos esperavam a vitória da Hungria, eis que a Alemanha venceu por três a dois e sagrou-se campeã do mundo pela primeira vez.
Nó retornou a Salvador e fiquei mais uma vez amargando a nossa separação.
A política estava chegando ao auge contra Getúlio Vargas, então Presidente da República do Brasil. Quando eu acordei no dia 24 de agosto, Mamãe deu-me a notícia do suicídio dele, deixando uma carta, que ficou seguidamente lida pelas estações de rádio. Foi um dia tremendamente triste para toda a Nação brasileira. Depois do café matinal, fui à rua e o comércio em solidariedade à morte do Presidente, manteve-se com as portas cerradas durante três dias. Somente à tardinha, é que as padarias abriam uma meia porta para atender a  freguesia. As conversas nas ruas,  só giravam em torno daquele mesmo assunto, uns comentando que Getúlio fora um covarde em suicidar-se, já outros defendiam o ponto de vista de que ele fez um gesto de coragem. Cheguei até em pensar em minha tia Iaiá, irmã de Papai, que sempre fora ardente fã de D.Pedro II e de Getúlio Vargas.
Mas o trauma foi dando lugar às eleições municipais e Poções começou a movimentar-se através dos seus três Partidos políticos: o Republicano que não tendo candidato próprio, preferiu apoiar o candidato da União Democrática Nacional,(UDN),na pessoa do Dr. Aloysio Euthálio da Rocha e o Partido Social Democrático,(PSD), que apresentou o nome do Sr. João Gusmão Ferraz(Jambinho), pai de Noélia. Foi uma política muito suja. Eu que não estava acostumado a ver e ouvir tantos disparates, tantas acusações sem procedência, tanta sujeira, que acontecia principalmente através do serviço de alto falantes e pelos folhetos, que eram distribuídos à população, fiquei enojado. Nunca mais, Poções se curvou a tanta idiotice e tantos disparates dados de parte a parte. Embora tenham se passado quase 60 anos, quem viveu aquela época, deve estar recordando aquele mal estar causando á família poçõense pedindo a Deus para não acontecer nunca mais.
                                                              
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Até o papagaio que as meninas criavam, de tanto ouvir os dizeres do pessoal, gritava a toda hora, alto e em bom som:
“--- já ganhou !  já ganhou  !  já ganhou  !
Realizada a apuração dos votos, soube por pessoas que sempre acompanhavam o desenrolar das eleições, que houve fraude e acabou o Sr. Jambinho perdendo por 99 votos de diferença.
Passada aquela eleição, à partir das próximas, sempre fui convocado, para participar como mesário algumas vezes e mais adiante, talvez já tarimbado com o serviço eleitoral, fui guindado ao posto de Presidente da mesa. Mais tarde, fui chamado a fazer parte da mesa escrutinadora e ali, cheguei a ver  de perto, como alguns mesários adulteravam as cédulas. Guardei comigo aquele silêncio, porque não pretendia dedurar ninguém. Entretanto, quando finalmente fui ocupar o cargo de Presidente da Mesa escrutinadora, aquela moleza de outras apurações, acabou, pois eu tinha o trabalho de conferir voto por voto  e em seguida carimbava e rubricava.  Outra maneira de adulterar o resultado da votação era na hora de transportar a quantidade de votos de cada urna, para os mapas próprios de apuração. Fiquei revoltado com aquilo tudo que presenciei ao longo de vários anos. Eu, que sempre fui  apolítico, vendo aquela SEM-VERGONHICE total, abstive-me de comentar com meu pai, minha mãe e meus familiares.
Noélia já sabia do resultado da derrota que impingiram ao pai dela nas urnas e ao vê-la em novembro ela chorou muito. Mas aos poucos consegui acalmá-la e a fim de dar-lhe uma notícia mais agradável, mostrei-lhe um par de alianças, que havia comprado em Salvador e que até então mantivera sigilo absoluto. Prometi também que em 1955, iria pedir ao Sr. Jambinho o consentimento para que nós ficássemos noivos.
Antigamente Salvador ainda não possuía terminal rodoviário e a empresa pela qual viajávamos, utilizava a Ladeira de São Bento como o local propício para a chegada e saída dos seus veículos. A bagagem dos passageiros era colocada em  cima do teto do ônibus, coberta com uma lona e amarrada com cordas bem grossas, para que não despencassem lá de cima, devido o sacolejo do ônibus durante a viagem. Saíamos da Salvador entre cinco e cinco e meia da manhã,  com a primeira parada obrigatória em Feira de Santana,  em frente a uma lanchonete, que não oferecia aos passageiros, o mínimo de conforto ou de higiene. Basta dizer que nem sanitário tinha. Saliente-se também, que os próprios ônibus não dispunham de toalete à bordo. Numa certa viagem, naquele mesmo local, eu estava apertadíssimo para urinar e sabedor do desconforto, pelo qual passávamos, desci do ônibus, atravessei toda a extensão da lanchonete e sem que ninguém estivesse me observando, fui lá nos fundos e urinei tranquilamente  sobre umas caixas vazias de cerveja. Quando você compara os ônibus de hoje, com aquelas carroças dos anos 50, sente às vezes, que não desejaria ter nascido naquela época.

SEM- VERGONHICE: falta de vergonha, de pudor. Indecência. Ato ou procedimento de quem é sem-vergonha.

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Depois da parada de Feira de Santana, havia uma segunda, em frente a um bar, próximo a Santo Estevão. Naquele local, ninguém descia e também ninguém subia. Pergunta-se então: ---Porque aquela parada ali?. Mais adiante outras duas paradas em postos de combustível, com um restaurante ao lado, com os nomes sugestivos de Maracanã e Pacaembu, possivelmente em homenagem aos estádios de futebol do Rio de Janeiro  e de São Paulo. Será que os motoristas dos ônibus ganhavam alguma gorjeta para fazer aquelas paradas naqueles locais? Chegando em Milagres, quase ao meio dia , se a viagem estivesse indo normal, lá no alto da serra , havia uma pensão onde  a parada era obrigatória, tanto para quem ia ao interior, como para quem estivesse voltando a Salvador. Inferno acontecia quando por acaso os dois ônibus chegavam quase no mesmo horário. Era tanta gente com fome. Uns indo aos sanitários, que no caso eram apenas dois cubículos, para atender cerca de sessenta a oitenta passageiros. Já outros, procuravam arranjar logo, seus lugares a fim de serem imediatamente servidos. Não havia ainda o esquema de selv-service. A disputa dos lugares era tremenda e algumas pessoas eram até mal servidas. Para ser franco, nunca sentei-me naquela pensão para almoçar. Hoje em dia, todas às vezes, que passo naquele local, olho de imediato para recordar o que foi no passado aquela pensão. Restam apenas as paredes frontais. O restante, o tempo e os incautos acabaram de destruir. Seguindo a viagem, íamos ter uma nova parada no chamado quilômetro l00. Recebeu esse nome algum dia, porque alguém achou que dali até Jequié eram exatamente 100 quilômetros de distância. Mais adiante, uma nova parada no entroncamento que leva à Cidade de Jaguaquara. Por vezes, subiam alguns passageiros com destino a Jequié, que seria a nova parada obrigatória. Ali é que sempre foi uma provocação a todos os Santos. Para promover a cidade, a Prefeitura local  mandou construir o terminal rodoviário no próprio perímetro urbano, onde o ônibus passa vagarosamente por ruas estreitas, com perigo até de atropelamento. E a espera na continuação   da viagem, doía todos os ossos das pessoas que já estavam alí estafados depois de inúmeras paradas. Os motoristas, além do lanche, que às vezes eram jantares, nem se preocupavam com o tempo. Ficavam  conversando uns com os outros à vontade.
Naquela viagem, que foi de uma felicidade geral, pois não houve quebra de peças do ônibus, conseguimos chegar em Poções,  aí por volta da meia noite, naquela rua estreita, que algum dia, recebeu o nome de Travessa Lions Clube.
Alguns garotos, que sempre ficavam à espera dos ônibus, pegaram a nossa bagagem para ganhar alguns trocados. Sugeri a um deles que ficasse a minha espera com a minha maleta, pois iria levar Noélia até a residência  dela. Acompanhei-a de fato até a sua porta e só me retirei depois que a mesma foi aberta. Não sei , se para não incomodar o seu pessoal , Nó não avisou a ninguém da data de sua chegada. Despedi-me e voltei a agência onde o garoto estava a minha espera. Dali fomos para casa.

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