Em 23 de agosto de 1939, Mamãe
deu a luz ao mano Affonso, sendo assistida mais uma vez por Vovô Manta. Papai
recebeu a notícia por carta, dias depois, mas respondeu, dizendo que só
voltaria em novembro, já com a intenção de levar a família toda para Iguaí. Poderia
não ser uma mina de ouro, mas para começar, seria uma boa tentativa. Objetivando
para que de novo eu não perdesse o ano escolar Eu estava cursando o terceiro
ano primário.Tia Dulce foi comigo até o Colégio Nossa Senhora de Lourdes e
explicando a situação, solicitou que
fizessem as minhas provas finais, antecipadamente. O que foi feito e fui
aprovado, para fazer no ano seguinte, a
quarta série do curso primário.
Assim, em fins de novembro,
partimos para a segunda e por sorte nossa, a última aventura. Observem bem o tipo de viagem daquela época.
No primeiro dia de viagem,
embarcamos num navio que no levou de Salvador até Nazaré (antigamente chamada
de Nazaré das farinhas, porque havia um bom fabrico de farinha naquela redondeza),
num percurso que levou aproximadamente seis horas. Pernoitamos numa pensão bem perto da estação
ferroviária, porque no segundo dia de
viagem , quase às cinco horas da matina, o trem de ferro partiu da
estação, com destino à cidade de Jequié. Foi uma viagem cansativa e aborrecida.
Um trem vagaroso, poeirento, de vez em quando parava nas estações, que ficavam
ao longo daquele trecho. Para encurtar a história, chegamos à cidade de Jequié
perto das vinte e duas horas. Alguns carregadores de bagagem ajudaram a Papai a
arrumar tudo, numa espécie de veículo, que eles chamavam de taxi e dai rumamos
para um hotel, se não me engano, por nome REX. E assim, se foi o segundo dia.
Quando raiou o terceiro dia,
viajamos num automóvel, previamente contratado por Papai, que nos trouxe até Poções
fazendo uma boa pausa, na pensão do Sr. Arlindo Carvalho, onde Mamãe cuidou dos
asseios dela própria e das crianças menores. Em quanto isso, tomei meu café e
fui até à porta da rua, conhecer de longe, aquela nova Cidade. O sol batia bem
de frente nas paredes da pensão, mas naquele horário da manhã, nunca havia
sentido tanto frio em minha vida. Ali encontrei o Sr. Arlindo, o dono da
pensão, um senhor baixo, gordo, bem avermelhado, que sentado numa cadeira,
parecia estar esquentando-se ao sol. Vi uma praça bem grande e lá no fundo, avistei
uma igrejinha, quando naquele instante, dois padres caminhavam para lá.
---O senhor conhece aqueles dois
padres? --- perguntei ao Sr. Arlindo, sem cerimônia.
---Conheço sim garoto. O de
cabeça bem alva é o Padre Pithon (foi aquela a única vez que o vi), que será
substituído pelo outro, que o povo, já está aprendendo a chamá-lo de Padre
Honorato. Depois desse breve diálogo, já com o pessoal todo arrumado, entramos
no automóvel saindo da frente da pensão pela esquerda, em direção à outra
praça, ladeada de várias casas comerciais. Fomos até um povoado chamado Morrinhos,
onde o automóvel nos deixou. Ali, é que nós começamos a sentir o peso da viagem.
Papai montou num burro. Mamãe, toda desajeitada, ficou em cima de outro. Um
moço por nome Catarino levou Affonso, agora com três meses, enquanto outro
rapaz conduzia Aryolinda no cabeçote da Sela. Um terceiro rapaz fazia o mesmo
com Silvio Caetano.
8
Fui sentado na GUARUPA
do animal, segurando o cinto das calças do rapaz, que conduzia o seu animal.
Imaginem viajar naquelas condições, pela
primeira vez durante 57 quilômetros. Felizmente para todos, é que a viagem foi
realizada em dois dias.
À tardinha, chegamos praticamente
ao meio da jornada, em uma casa onde Papai certamente havia planejado todos os
detalhes, com antecedência, pois tudo estava arrumadinho a nossa espera. Ali
nos banhamos, jantamos e dormimos. No dia seguinte (quarto dia, portanto) logo
cedo, após um reforçado café da manhã, seguimos definitivamente a Iguaí, lá
chegando por volta das 16 horas. No percurso, havia muito rio para atravessar e
isso dificultava e atrasava a viagem. Hospedamo-nos na Pensão de Dona Raquel,
porque a casa que Papai alugara, ainda estava nos últimos retoques de limpeza e
pintura.
Como criança, não sente o
cansaço, logo após o jantar, Zezito, um rapazinho dos seus 15 anos, filho de
Dona Raquel, levou-me a um circo armado na outra praça. Iguaí, não possuía luz
elétrica, mas o circo dispunha de um motorzinho, que supria as necessidades dos
seus funcionários, como também deixava a plateia à vontade.
Era um circo do tipo, que hoje em
dia é chamado de MAMBEMBE.
Existiam dois palhaços, um malabarista, um ilusionista e umas moças vestidas de
maiôs, que só apareciam, para mostrar os corpos. A primeira parte foi só de
atrativos variados. Na segunda parte, o grupo encenou uma peça alusiva ao
Natal, visto que o mesmo já estava próximo.
A partir daquele dia, ficamos
esperando para passar à casa alugada. Mamãe foi andando comigo e verifiquei que
a mesma era mais ou menos, assim disposta.
A sala da frente dispunha de duas janelas que eram voltadas para a rua.
Havia uma saleta menor, logo após aquela sala e que dispunha de uma janela
voltada para a parte lateral da casa. Foi nessa saleta que mais adiante Papai atendeu os
clientes. Seguindo em frente pelo lado direito, estavam três quartos
sucessivos, todos com a porta voltada para a sala de jantar e janelas para a
outra parte lateral da casa. Em seguida ao último quarto vinha um banheiro com
torneira. Ao lado da sala de jantar é que vinha uma cozinha, que possuía uma
porta, voltada para o quintal. Bem longe da casa, próxima ao muro, havia uma
pequenina construção que serviria às necessidades fisiológicas. Por isso mesmo,
Papai teve que comprar urinóis que mandou colocar embaixo de cada cama.
GUARUPA:
A anca dos quadrupedes, especialmente dos equídeos.
MAMBEMBE: Lugar afastado sem recurso, nem
conforto. Grupo teatral itinerante de
baixa qualidade e formado por atores de má qualidade ou pouco valor. Ordinário.
9
Quando Papai começou a
entrosar-se no serviço médico, com o atendimento dentro da própria casa,
apareceu Tio Júlio , trazendo de Maragogipe uma mocinha de seus quinze anos,
por nome Tezinha, que veio trabalhar com Mamãe, para cuidar da casa e dos
meninos, pois Papai já havia arrumado uma cozinheira. Com a chagada de Tio
Júlio, Papai mostrou a ele uma lista de medicamentos necessária para os atendimentos de urgência.
Como também Iguaí não dispunha de farmácia. Alguns medicamentos eram
conseguidos em mão de um rapaz, que de vez em quando, viajava e trazia, para
vender aos incautos. Mas, sabedor da presença de Papai, ele começou a se abster
de praticar a medicina charlatã.
Papai e tio Júlio tiveram a ideia então,
de montar uma pequena farmácia.
Todas as noites, sem exceção, eu
seguia Papai até o bar do Sr. Manoel Pereira, para saber das notícias
transmitidas pelo rádio de bateria, principalmente futebol
e sobre a guerra que já se alastrava pela Europa. No bar do Sr. Manoel Pereira
existiam duas mesas onde os rapazes jogavam bilhar ou sinuca. O rádio era
colocado em cima de uma prateleira de madeira, há quase dois metros e meio de
altura, para que a transmissão fosse audível para todos. Possuía também um balcão de madeira, onde eram
servidas bebidas aos fregueses que não quisessem sentar-se em volta das duas mesas dispostas no salão. A freguesia era boa,
principalmente no horário da “Voz do Brasil” e quando eram transmitidos os
jogos de futebol .
E nessa vidinha boa, 1939 foi
embora.
Assim que começou o novo ano, à
partir de fevereiro, Papai matriculou-me na escola particular do Sr.
Miguelzinho. Era um tipo mal encarado, baixinho, corcunda, de pele avermelhada,
casado com uma mulher muito bonita, com dois filhos menores, com quatro e dois
anos respectivamente.
Não sei explicar se por causa do seu defeito físico,
ou porque os homens não tiravam os olhos de sua mulher, o problema era
revertido em cima dos alunos. E quem caísse na desgraça do professor
Miguelzinho, estaria sujeito a:
a)ficar de joelhos em cima de
caroços de milho, no canto da sala de aula.(Fiquei duas vezes, por brigar com
colegas);
b)ficar de joelhos em cima das
janelas da sala de aula, com as pernas voltadas para dentro de casa, com uma
coroa de papelão na cabeça e ainda ostentando um faixa onde se lia :”SOU
BURRO”;
c)ganhar bordoadas nas mãos,
aplicadas com uma PALMATÓRIA de
madeira.
Além desses castigos, os alunos eram
submetidos a receber “cascudos”,
“beliscões” e piparotes nos lóbulos das
orelhas.
Tendo em vista tantas
atrocidades, os pais se reuniram e retiraram todos os filhos da escola do Sr.
Miguelzinho, que não tendo outro meio de vida, mudou-se de Iguaí.
PALMATÓRIA:
Peça de madeira, geralmente redonda, dotada de um cabo, usada para bater na mão de quem merecesse tal castigo.
10
Para nós, da quarta série, surgiu
a figura benemérita e serena da Professora
Ester Galvão Gonçalves, cujo nome e imagem, sempre guardei em minha memória, mesmo tendo passado todos
esses anos. Era uma pessoa bondosa, calma, cônscia dos seus deveres
profissionais. Além das disciplinas constantes do currículo, ela incluía
música, teatro, religião com os aconselhamentos de uma boa mãe.
Éramos quatro, os alunos da
quarta série, começando pelos mais
velhos em ordem decrescente:
João Mãozinha (nunca soube o
sobrenome dele). Era um rapaz com cerca de dezessete anos, alto moreno que
possuía na mão esquerda um defeito, onde os quatro dedos, ressecados se
juntavam ao polegar normal. Como ele era destro, usava somente a mão esquerda
para ajudar a segurar os objetos, o que fazia com toda a habilidade possível.
Professava a religião sabatista e a Professora Ester tendo
que dispensá-lo das aulas de sábado, o fez também conosco. Somente os
alunos das outras séries é que frequentavam a escola no dia de sábado.
Arnaldo Désquivel Souza ,com cerca de dezesseis anos, era neto
de um comerciante ,por nome João Batista de Souza, que por sinal, Papai tomou-o
para ser meu padrinho de crisma. Os pais de Arnaldo residiam no Rio de Janeiro
e assim que o mesmo concluiu a quarta série, viajou e nunca mais o vi.
João Alves Pereira estava com
treze anos. O pai dele era o Sr. Manoel Pereira, dono do bar e certa feita convidou
os meus pais para serem padrinhos de uma filha dele, logicamente, irmã de João.
Após a conclusão do seu curso, ele e eu, tomamos caminhos diferentes e anos
depois fomos nos encontrar em plena Faculdade de Odontologia.
Quanto à Professora Ester Galvão
Gonçalves, deveria estar viva ainda, para que eu pudesse dar-lhe um grande
abraço de agradecimento. Com os ensinamentos dela, quando fui chamado a
Salvador por Tia Edite, para prestar os exames de admissão, não precisei fazer
teste algum. Passei direto, para fazer a primeira série ginasial.
Além dos seus ensinamentos
normais, a professora Ester periodicamente, organizava uns debates estudantis,
entre todos os alunos das diversas
séries. Assim é que, a nossa turma participou de dois debates durante o ano de 1940.
No primeiro, José Mãozinha e eu, juntos, tivemos que escrever e defender a
atuação dos religiosos na comunidade, enquanto Arnaldo e João Pereira fizeram a
defesa dos advogados. Em outra oportunidade, João Pereira e eu fomos defender
os médicos e João Mãozinha e Arnaldo defenderam os professores. Era um debate
sadio e nenhuma dupla acusava a adversária. Cada qual defendia o seu ponto de vista e a plateia era formada,
justamente pelos pais de alunos que iam assistir e provavelmente saiam
satisfeitos. Quem se lembrava de que em algum dia fomos alunos do tal
Miguelzinho? Concluímos o nosso curso primário e a despedida foi muito emocionante. Choravam os alunos e a Professora que não se continha em prantos.
Possivelmente em toda a carreira dela, nunca tivera alunos tão estudiosos. A
lembrança de cada lado ,deve ter sido eterna. Professora que Deus a guarde num bom lugar.
11