No ano de 1944, passei por uma experiência nova. Assim, é
que na volta de Salvador para cá, já haviam inaugurado um terminal marítimo no
porto de São Roque. Dessa forma, o navio que fazia aquela rota, não mais iria
até Nazaré. Os passageiros desciam em São Roque do Paraguaçu e ali mesmo
pegavam o trem, que os conduziriam até Jequié. Portanto, uma viagem que até
então, era feita de Salvador a Iguaí, em quatro dias, ficou reduzida a três. À
principio, comprava-se um bilhete em Salvador até São Roque e um outro dali até
Jequié, mas algum tempo depois, já se podia adquirir o bilhete na Navegação
Bahiana, dando o direito de viajar de
navio e em seguida no trem, ou vice-versa. Nessa primeira viagem, uma peça do
trem, quebrou-se e ficamos parados em Jequiriçá, por muito tempo e quando
chegamos ao final da viagem em Jequié, o dia estava clareando. Com o
TIQUETE da bagagem, chamei um “carregador” que levou a
minha mala e me conduziu até a ponte que fica sobre o rio de Contas, onde por
sorte, peguei logo um caminhão que me
deixou na porta da pensão do Sr. Arlindo Carvalho. No dia seguinte, em
companhia do guia que Papai providenciara, para me esperar e conduzir até
Iguaí, saímos cedo e mesmo com as dificuldades existentes no caminho, como passagens
de rio cheio, onde, para não molhar os
pés e as pernas, nos forçavam as suspendê-las, pois a água do rio, chegava até
a barriga dos animais. Afora isso, chegamos ao fim da jornada sãos e salvos,
sem nenhum incidente.
Antes do Natal, soubemos que uma cigana, com bola de cristal,
cartas de tarô e outros artefatos usados por elas, estava hospedada na pensão de Dona
Raquel. A notícia espalhou-se rapidamente entre nós adolescentes e assim, logo
na primeira noite de atendimento, um bom grupo de rapazes e moças, juntou-se à
porta da pensão, onde tivemos que fazer fila. Leitura de mão era o preço mais
barato e à medida que fossem incluídas outras modalidades, o pagamento era
maior. Preferi somente a leitura de mão, pois um rapazola de apenas 14 anos, não dispunha no
bolso, desse dinheiro folgado, para gastar com uma cigana.
Era uma cigana morena, de olhos verdes, aparentando ter mais
de 40 anos. Trazia sobre a cabeça, um pano de seda branco. Nas orelhas, duas
argolas, tipo moedas, de cor dourada. Sobrancelhas cheias, num rosto
extremamente redondo. Fora bem bonita, quando mais jovem, pois ainda trazia vestígios
parcos de estar próxima ao CLIMATÉRIO.
Sentei-me em sua frente,
separados apenas, por uma mesa de madeira, quadrada. A seu pedido,
coloquei a minha mão direita, com a palma voltada para cima. Ela, com a sua mão
esquerda segurou os quatro dedos de minha mão, deixando livre apenas o polegar.
Com a outra mão, ela foi analisando o que via e depois de alguns segundos,
começou mais ou menos assim:
TIQUETE: cartão, bilhete ou
comprovante, que garante acesso a receber um objeto, previamente entregue.
Serve também, para facilitar a entrada em alguma diversão pública.
CLIMATÉRIO: Período correspondente
à menopausa ou a declínio sexual e que se caracteriza por um conjunto de modificações
orgânicas e psíquicas.
x.x.x
---”Rapaz, você não mora nesse
lugarejo. Confirme com a cabeça se estou certa ou errada.”
Balancei a cabeça afirmativamente,
porque de fato praticamente eu residia em Salvador. Eram dez meses cuidando dos
meus estudos , enquanto em Iguaí os dois meses de férias, entre os meados de
dezembro até fevereiro.
Ela continuou:
“---Essa sua namorada, irá viajar
e nunca mais vocês se verão.”
Na praça, onde nós morávamos, a
casa já era própria, pois naquele período residindo na Vila, Papai começou
amealhando algum dinheirinho e paulatinamente foi aplicando na construção da
casa, não mais ficando sujeito a pagar aluguel. Do lado direito, morava uma
família, onde o filho mais velho de apelido Fuá namorava uma das gêmeas, que
estava passando algum tempo em Iguaí e o pai delas havia alugado a casa do lado
esquerdo da nossa. A outra gêmea era justamente a minha namorada. Um mês depois,
ou seja em princípios de janeiro de 1945,a família viajou e nunca mais retornou a Iguaí.
Naquela noite, pela segunda vez, a
cigana acertara em cheio. E ela, continuou:
“---Em sua vida profissional,
daqui a alguns anos, não irá ganhar muito dinheiro. Isso quer dizer: não ficará
rico. Terá apenas o suficiente para manter a sua família tranquila. Finalmente estou
ainda vendo em sua mão, que a linha da vida o conduzirá até 99.”
Essa última frase me deixou intranquilo
por diversos anos. De fato, como dentista, não ganhei muito dinheiro. Trabalhei
na Câmara de Vereadores durante 35 anos, no período compreendido entre 1959 e
1994 e todos sabem que qualquer funcionário municipal, não tem lá esses rendimentos
(a não ser aqueles que fazem parte das maracutaias dos governos fraudulentos).
Lecionei também no Ginásio de Poções, mais tarde CNEC e mais três anos no
IECEM, totalizando 43 anos, sendo a maior parte dos rendimentos, pagos pelo
Governo do Estado da Bahia. E mais uma vez, confirma-se aquela velha história,
que o Professor se sacrifica para ajudar os outros. E a cigana , aí, também não
errou.
Sobre a linha da vida citada por
ela, há o fato que passei o ano de 1999 todo MACAMBUZIO e quando Noélia e eu comemoramos a passagem daquele,
para o ano 2000, disse comigo:
---Esse 99, citado pela cigana,
já se foi. E é o que resta para a cigana acertar. Que 99 será esse?
Espero que Deus me dê muita
saúde, para que eu possa atingir em breve, os meus jovens 99 aninhos e em
especial na companhia de minha querida Nó.”
MACAMBUZIO:
Que apresenta tristeza. Que possui temperamento
fechado, taciturno e melancólico
x.x.x
Em fins de fevereiro de 1945, tio
Júlio estando em Poções, mandou um recado a Papai, que estaria me esperando a
fim de seguirmos à Salvador.
Como a estrada de rodagem,
Poções-Iguaí estava precariamente construída, Papai conseguiu para mim, um
lugar na boleia de um caminhão que faria aquele percurso, saindo depois do
almoço. Sentei-me ao lado de uma garotinha de uns cinco anos, que por sua vez, estava
ao lado da mãe. O marido era justamente o motorista e proprietário do caminhão.
Na carroceria viajavam pelo menos, umas quinze pessoas. Quando passávamos por
Nova Canaã, já próximos a subir a serra
, eis que o tempo fechou com relâmpagos, raios e trovões com prenúncios de um
chuva copiosa. De onde estávamos na boleia, ouvíamos gritos histéricos das
mulheres medrosas que estavam na
carroceria. Em dado momento, o caminhão caiu num buraco, pois a quantidade de água que descia pela estrada,
impedia a visibilidade do motorista. Ele e o ajudante desceram e tentaram ver
de perto as condições de safar o veículo do atoleiro. Como a chuva aumentava de
intensidade cada vez mais, o motorista voltou à cabine e avisou a todos que
iria esperar a chuva melhorar. Tal não aconteceu, pelo menos na primeira hora.
Depois que a chuva AMAINOU mais, o
motorista e o ajudante tornaram a
verificar as condições do caminhão dentro do buraco e observaram que com a
enxurrada forte que descia, era impossível trabalhar, naquelas condições, mesmo com a
ajuda de alguns passageiros. Então os dois saíram do local e instantes depois
voltaram, dizendo aos passageiros que encontraram uma casa ali perto, cujo dono
se prontificou a dar abrigo a todos. Como na zona da mata, escurece mais rápido
e ainda mais com aquele tempo horroroso, aceitamos a passar a noite na tal casa
que era coberta de palha. Havia um sala bem grande, que possivelmente fora
assim feita para a secagem dos grãos. Lá no fundo, havia uma porta que dava acesso
a um quarto e uma cozinha com um fogão de barro. Como havia uma montanha de achas
de lenha, empilhadas num dos cantos da
sala, alguém teve a ideia de distribuí-las entre os passageiros para com elas fazer
a sua própria cama. Sempre eu usava um chapéu de feltro que Papai já comprara
há bastante tempo,para usá-lo nas viagens de trem, pois a poeira estragava o nosso cabelo
e ele me serviu de travesseiro, horas mais tarde.
Vamos fazer agora uma pequena pausa
para meditação;
---Alguém que está lendo esta
autobiografia, já teve a oportunidade de dormir em cima de lascas de lenha, tendo
como travesseiro um pequenp chapéu de feltro ?
Com o consentimento do dono da
casa, acenderam uma pequena fogueira bem no centro da sala, para que ninguém
sentisse frio.
O nosso jantar, constitui-se de um pedaço de requeijão com mel, farinha e uma caneca d’água , pois um dos
passageiros que trazia aqueles alimentos no caminhão, resolveu vender a cada
companheiro de jornada, um pouco daquilo.
AMAINOU:
Do verbo amainar. Diminuir a força do vento, do mar, da chuva, etc.
Tornar sereno. Acalmar.
x.x.x
Lá fora, sentíamos que os trovões não eram muito intensos mas a
chuva caia incessante. Durante um bom tempo, muitos passageiros, conversaram
sobre diversos assuntos, mas as horas
foram passando e houve a necessidade imperiosa de dormir. Deitar em cima
daquelas achas de lenha foi um sacrifício enorme, mas que jeito. Acomodei-me
como pude, fazendo o próprio chapéu de travesseiro. Dormi. Para não deixar a fogueira
apagar-se definitivamente, alguém teve o cuidado de estar sempre olhando e
quando sentia que o fogo estava baixando, saía pelos quatro cantos da sala,
solicitando de cada passageiro, uma lasca de lenha de sua linda cama. Com isso,
o sono era interrompido e voltar a dormir
com menos um pedaço da “cama” , era por demais, doloroso. Tal fato se repetiu
mais uma vez no decorrer da madrugada e estava torcendo para que o dia logo
amanhecesse. Quando estava sentindo que aquele sofrimento iria terminar, eis,
que próximo a mim, comecei a ouvir uns piados. Pus os meus ouvidos bem à
escuta, para saber ao certo, de que lado,
partiam aqueles piados. Lá ao centro, a fogueira, mais uma vez, estava
se apagando, entretanto, comecei a perceber os primeiros ALBORES do dia. Como os piados à minha volta estavam
aumentando, resolvi logo enfrentar
naquela penumbra, o inimigo piador. Mas ainda não dava para enxergar direito.
Fiquei escutando tranquilamente, enquanto
comigo mesmo pensava:
---Será alguma cobra, que por
causa da chuva rastejou para cá?”.
O fato é que em dado momento, com
a mão esquerda, num lance bem rápido, agarrei alguma coisa quente. Trouxe para
perto de mim e observei que eu pegara
simplesmente no pescoço de um filhote de perua, que se desgarrou do ninho e ficou procurando abrigo.
O pessoal começou a levantar-se e
alguém veio anunciar que por causa da chuva, ele descobrira um pequena córrego
com água límpida, que daria para todos fazerem o seu asseio pessoal, como
escovar os dentes e lavar o rosto.
Depois que todos se “arrumaram”,
conseguiram desatolar o caminhão e seguimos viagem em jejum até Poções e quando
chegamos na Praça Deocleciano Teixeira, havia uma quantidade de pessoas fora do
comum, aproximando-se do veículo. Conversas para lá e para cá, conseguimos averiguar, que correu uma onda de boatos pela cidade, onde houvera um acidente conosco, lá nas “Sete
Voltas”.
Peguei a minha maleta e segui direto até a “República
dos Viajantes”. Tio Júlio não estava e a moça que me atendeu disse que o mesmo
havia saído. Deixei a maleta no quarto e avisei à moça que eu iria à Pensão do
Sr. Arlindo Carvalho, almoçar, pois estava com uma fome incrível.
Paguei o almoço e ao retornar
encontrei tio Júlio meio preocupado com os boatos que ouvira.
---“Que foi que houve, Dydy?”
Desde ontem estava à sua espera e como você não apareceu, hoje cedo mandei um
recado para Ary.
Com poucas palavras contei-lhe
o que ocorrera.
ALBORES
OU ALVORES: claridade fraca ou efêmera. Primeira luz do amanhecer.
x.x.x