terça-feira, 26 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias (p 13)


Com a ARC (Associação Recreativa Cruzeiro), entidade esportiva, sem nenhuma pretensão jurídica, criada apenas para participar de uns campeonatos da redondeza, nos inscrevemos em duas modalidades esportivas: futebol, onde participaram seis equipes e tivemos o grande privilégio de ficarmos com o honroso sexto lugar( último lugar no caso) e voleibol, que num jogo dramático, chegamos até a final e por azar de um dos nossos, que fraturou o dedo mindinho, orgulhosamente fomos vice-campeões.
Certa feita, Renato, como Presidente e incentivado muito por sua mãe, propôs que fizéssemos um passeio para pernoitar na Pituba. Sairíamos à tardinha do sábado, já levando inclusive uma feijoada pronta e naquele local faríamos um PIQUENIQUE e somente à tarde do domingo retornaríamos à Rua do Alvo. Durante a reunião, realizada na residência do próprio Renato, organizamos antecipadamente o rodizio, onde num intervalo de duas horas, cada dupla teria que ficar acordada, fazendo vigília, quando os demais componentes do grupo, estariam dormindo. Pelo sorteio realizado, iria fazer dupla com Chico e começaríamos às 4 da madrugada, estendendo o nosso turno  até as seis da matina.
Chegado o dia de sábado, saímos da Rua do Alvo às 15 horas, descendo a ladeira, galgando o Pelourinho, para então na Praça da Sé pegar o bonde que nos conduziria até o ponto final, em Amaralina. Dali até a Pituba, era uma caminhada a pé, onde pelo lado direito as ondas do mar nos acompanhavam e pelo lado esquerdo, dunas e mais dunas de areia. De vez em quando, surgia a cabana de algum pescador. Seguimos em frente, até que a turma de comum acordo achou um local bem agradável, próximo a muitos coqueiros. Já estava escurecendo quando acabamos de armar o acampamento, composto por duas barracas de lona, onde cada uma caberia folgadamente, entre quatro a cinco pessoas. Nosso jantar, havia sido preparado pela mãe de Renato e consistia de café quente feito na hora, pão com manteiga e pedaços de bolo de milho. Depois fomos passear pelas redondezas, onde vislumbramos aqui e ali, umas luzinhas vindas de barracas de pescadores. Provavelmente aquelas luzes eram de candeeiros ou de fifós acesos, pois Pituba naquela época, ainda era um bairro formado apenas por pescadores.
Após o reconhecimento do terreno, mesmo às escuras, o nosso acampamento era iluminado por um aparelho ALLADIM, cujo combustível era o querosene.
Quando começou o primeiro turno ás vinte e duas horas, o pessoal começou a recolher-se e eu também fui no embalo, pois às quatro horas teria que levantar-me. Mas foi uma noite tumultuada, porque ninguém dormiu direito. Quando chegou as nossa vez, sentimos que o tempo estava mudando. Um vento frio que vinha do mar e som provocado pelas ondas fortes, prenunciavam que o nosso piquenique, estava por um fio.
Até às cinco e pouco, Chico e eu aguentamos firmes, mas sentimos que uma garoa fina começava a cair sobre nós e aí trocamos um breve diálogo no sentido de avisar ao pessoal que o tempo estava virando e a chuva poderia aumentar e nos molharmos todos, principalmente os que estavam agasalhados ao calor das barracas. Avisamos primeiramente a Renato, que observando o tempo comentou:
---“vocês têm razão. Se ficarmos aqui, iremos nos molhar completamente. É melhor acordarmos a turma e arribar acampamento. É uma pena, mas o nosso piquenique falhou”.

PIQUENIQUE: passeio festivo, com refeição no campo, na praia ou no ar livre.

ALLADIM: nome comercial de um objeto metálico, com partes de vidro, contendo no seu interior uma peça de amianto, que funcionando a querosene, ilumina com luz forte, qualquer lugar.

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O retorno foi crucial. Uns colegas tentaram vir, somente usando as sungas de banho, enquanto a maioria vestia a roupa completa, com camisa e calça comprida. À medida que andávamos de volta a Amaralina, a chuva aumentava de intensidade de um vento exageradamente frio. O que na véspera foi um DELEITE para todos, naquela manhã cinzenta parecia que o tempo  desejava nos castigar. Imaginem, portanto a situação.
Cada um de nós, além de segurarmos as nossas ALPERCATAS de couro, trazíamos também, panelas enroladas, com todo o material da feijoada pronta, as peças das duas barracas, enfim um desastre total. O certo é que, depois de muito andarmos, até o final da linha de bondes, em Amaralina, todos nós estávamos molhados somente do lado esquerdo. Por incrível que pareça, o lado direito da roupa, estava completamente seco. É que o vento soprando muito forte fazia com que a chuva nos molhasse somente do lado esquerdo.  Aproveitando o embalo e com fome, sentamos numas mesas existentes naquele final de linha e fomos tomar café, em uma das barracas,  aproveitando os pães e bolos que havíamos levado. Quando o bonde apareceu, subimos e seguimos viagem até alcançarmos a Praça da Sé. Saltamos e descemos o Pelourinho. Atravessamos a Baixa dos Sapateiros e subimos a Ladeira do Alvo, sem que a chuva fortíssima tivesse nos dado um pouco de trégua sequer. Toquei a campainha da casa de Tia Edite, justamente na hora em que o pessoal preparava-se para almoçar. Foi um alvoroço bem grande, assim que me aproximei todo molhado. Tia Edite, foi logo dizendo:
“Dydy vá tomar um banho esperto e vista uma roupa bem seca, para não pegar uma gripe forte .


DELEITE: prazer íntimo. Satisfação.


ALPERCATAS: Alparcata. Alpargata. Sandália que se ajusta ao pé por tiras de couro ou de pano.
(Obs.)Na época, quando aconteceu o fato acima narrado, somente existiam esse tipo de alpercatas de couro ou pano.


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quinta-feira, 21 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias (p12)


Iguaí, historicamente, sempre foi um local político. Estudantes, moradores de Iguaí, que faziam o seus cursos em Salvador ou em outros locais, eram olhados pelos rapazes e moças, com o maior carinho possível.
Então, à partir de dezembro de 1948, consegui reunir um grupo bem grande de adolescentes, que variavam entre 15 e 20 anos. Com reuniões frequentes, umas vezes na residência do Sr. Laudenor, um alfaiate muito amigo nosso e em outras ocasiões, na escadaria da igreja, conseguimos um grupo bem COESO, para realizarmos num ambiente fechado, o primeiro Carnaval de Iguaí, que cairia  entre os dias 8, 9 e 10 de fevereiro. Nesse período que antecederia às comemorações carnavalescas, procuramos um local espaçoso, onde comportaria o conjunto musical, as cadeiras, as mesas, um local onde seria montado um pequeno bar, deixando ainda o espaço suficiente para os foliões brincarem.
Os dias foram passando e aí começou a política. Outro grupo de rapazes e moças, não pertencentes ao nosso, achou por bem de nos imitar e se puseram a trabalhar com a finalidade de tentar a nos intimidar. Eram gracejos inconvenientes para com as mocinhas do nosso grupo. Ameaças aos rapazes se tentassem passar perto de onde eles ensaiavam. Enfim, uma guerra de nervos de se tornarem praticamente inimigos gratuitos. Era uma politicazinha mesquinha e absurda.
Finalmente as festas carnavalescas chegaram e os rumores apareciam de vez em quando. Ái, daquele folião que passasse próximo da festa do outro grupo. Era ameaçado de tomar surra. Um dos nossos, só para contrariar as recomendações que fizemos, numa daquelas noites, achou de passar perto da festa deles. Foi apedrejado e ele saiu correndo em disparada.
Como o nosso intuito era o de nos distrairmos, de forma alguma revidamos e nem procuramos confusão.
Felizmente o Carnaval transcorreu na maior euforia, mas senti de perto que desde aquela época, o local já transpirava a política na pele.
Foi a primeira e última vez que me envolvi em festas de grupos naquela Vila, hoje um dos mais prósperos Municípios da Bahia, que também não sei afirmar se ainda continua aquele ranço político de outrora.

COESO: Unido. Ligado por coesão. Que é harmônico. Coerente. Lógico. Onde existe ligação recíproca.


Alguns dias se passaram e dali da farmácia de Papai, notei certo zum zum zum numa daquelas tardes. Um caminhão repleto de criancinhas estacionou na praça principal, enquanto outras tantas estavam em volta, gritando, numa euforia contagiante. Depois de analisar e perguntar de um e de outro, soubemos que algum morador da Vila, num gesto altruístico, alugou aquele caminhão por algumas horas, para que o veículo rodasse pelas ruas principais, dando chance a maior parte da garotada a conhecer um veículo que eles nunca haviam sequer conhecido de perto. Foi uma algazarra tremenda, daquelas nunca vista na localidade.
Chegado o período escolar, regressei a Salvador, para cumprir mais uma etapa de estudos. Por coincidência ou não, namorei com três garotas quase que simultaneamente. Uma delas morava ali perto e chamava-se Vanda e tinha  a mania de chorar sem nenhum motivo. Ao contrário desta, outra, por nome Dagmar, residia em Mont Serrat, zona do Bomfim. Dagmar era uma morena alta, vistosa, de minha altura, muito bem feita de corpo, embora o rosto ficasse muito a desejar. Conheci-a numa festa no Iate Clube da Bahia, por causa de um grupo de estudantes de Medicina, que vendeu ingressos em benefício das festas de final de ano. E uma terceira, por nome Marina, que somente via às tardes num curso de datilografia. Das três, a que eu tinha maior contato era Vanda, pois a via todas as noites, exceto sábado, que era a vez de Dagmar, por morar muito longe e estudante pobre, não dispunha de verba suficiente para tais visitas frequentes.
No Colégio Antônio Vieira, havia no meu tempo, dois regimes de frequência: o externato que era o meu  e a maior parte dos meus colegas, que com o correr do tempo, descobri, que pertenciam à famílias ricas ou de classe média alta e o segundo tipo, de internato, para alunos cujas famílias não residiam em Salvador. Assim ao ingressar naquele Colégio já fui com a intenção de estudar para passar no Vestibular, pois, ele era um dos melhores da Capital e queria repetir o feito deixado por meus avós Manta e Afonso. Com essa finalidade em mente, fui aos poucos me afastando das namoradas. Por sua vez, o Colégio Antônio Vieira, incentivava os seus alunos, com uma premiação de medalhas ao final do ano letivo e dessa forma ao concluir a primeira série do curso científico, ganhei duas medalhas de primeiro lugar, sendo uma em Matemática e a outra em Química.
Na parte de Educação Física, o aluno tinha o livre ARBÍTRIO, em escolher o esporte que desejasse. De primeira, escolhi basquetebol, pois era um esporte que nunca praticara, mas quando notei de perto, que era muito violento, desisti e me dediquei inteiramente ao voleibol, onde me firmei.

ARBÍTRIO: decisão apenas da vontade. Vontade própria e independente. Livre arbítrio loc. Poder de decisão sem coação exterior.
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Durante a minha permanência na primeira série, observei de imediato que os rapazes pertenciam a família riquíssimas e a maior parte, dos hoje chamados de “filhinhos do papai”. Metidos, cheios da grana e já falavam em autos, e que Papai era assim, ou papai era assado. Deles, aos poucos só queria distância. Então, nesse tipo de convivência a que não estava acostumado, fui fazendo minha peneiragem, até chegar a dois filhos de espanhóis chamados de Manoel Quintas Ferrero e Jesus Alonso Baqueiro. O Quintas, era um rapaz de boa índole, estudioso e sentava à minha frente, onde ao nosso lado esquerdo, estava um armário de madeira e vidro e dentro, um esqueleto. Por sua vez, o Jesus, era o oposto. Não queria saber de estudar, levando tudo na brincadeira. O certo é que ao final, do ano, enquanto, eu ganhava as duas medalhas já citadas e Quintas recebia a sua, de primeiro lugar em Desenho, Jesus amargava uma reprovação na maioria das disciplinas.

Naquele ano, um fato teve que ser chamado às sérias consequências. O Professor de Francês, supondo que o filho dele fosse aprovado no Exame de Admissão, ao saber do resultado, reprovou a nossa turma de forma total. De forma que regressei a Iguaí aborrecido com o que acontecera. Em fevereiro, teria que interromper as minhas férias e retornar a Salvador, para prestar a chamada “segunda época”, que era um tipo de exame escrito e oral, para aqueles que dependessem de qualquer disciplina. Para não aborrecer meus pais com aquela noticia, limitei-me a fingir que nada acontecera, tendo o cuidado apenas de soltar  um a mentirinha a Papai, dizendo que as aulas iriam recomeçar mais cedo. Aconteceu, entretanto, o que ninguém esperava. Os padres, da direção do Vieira, chamaram o tal Professor de Francês, procurando saber o porquê de todos os seus alunos serem reprovados.  E no frigir dos ovos, comprovou-se que fora proposital a reprovação em massa. Isso, só soube depois, ao regressar ao Colégio

Ao final do mês de janeiro, num belo dia, ao chegar para o almoço, Papai mostrou-nos o Boletim de aprovação em todas as disciplinas, ou seja Francês também estava incluída na relação.

Retornei a Salvador um pouco antes, para Papai não desconfiar que eu havia mentido e fui curtir um pouco as namoradas, os cinemas e os meu amiguinhos da rua do Alvo, onde  morávamos. A rua era constituída de famílias da classe média. Alí convivi alguns anos em companhia das minhas tias: Edite, dona da casa, esposa de tio Júlio Dantas, o caixeiro viajante que incentivou Papai a ir exercer a profissão de médico no interior. Tia Licinha(Alice), minha madrinha de representar, que fazia questão de sempre frisar aquele detalhe. Era solteira, pois em sua infância, sofreu meningite e de vez em quando, tinha surtos de arrebatamento. Tia Dulce, que ainda alcancei estudando os últimos anos do Magistério, mas alguns anos depois conheceu Franklin e com ele casou-se, mudando-se para Vitória, capital do Espírito Santo, onde constituiu família.
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Além das minhas três tias citadas, ainda conviviam naquela casa: Vovô Manta, médico, capitão da Polícia do Estado da Bahia, onde muitas e muitas vezes foi acompanhar as milícias que estavam atrás do bando de Lampião e Maria Bonita.

Antônio Natalino, Carolina (Carol) e Maria da Conceição (Ceça), eram os três filhos de tia Edite, nascidos em 1938, 41 e 42 respectivamente. Dalva Manta Malaquias, que fazia o Curso de Magistério, no Instituto Normal da Bahia, era minha prima, filha de tia Dedé e o irmão dela Orlando (Branco). Mais tarde um pouco, chegou Diva, mas Orlando foi morar com outros parentes. Vivíamos com o objetivo principal de estudar. Enquanto nós maiores, já havíamos concluído o curso ginasial, tia Edite matriculara Natalino, Carol e Ceça, no Colégio da Professora Anfrisia Santiago iniciando-os no curso primário.
“Nas horas vagas, subíamos ao telhado do quarto de vovô Manta, para empinar “arraias” ou” periquitos”.
Pertencente ao bairro da Saúde, a rua do Alvo era vizinha do Godinho e naquela periferia, fiz algumas amizades com garotas e rapazes do meu tope. Os mais chegados por causa dos babas tradicionais, eram Chico e Alemãozinho. Chico era um adolescente, um pouco mais alto do que eu, mas não gostava de jogar futebol e por isso mesmo, andava sempre vestia terno completo (calça e paletó). Era um piadista de mão cheia e sentia-se muito feliz em nossa companhia. Alemãozinho por sua vez, era um exímio jogador de futebol. Meio gordinho e de pequena estatura, cabelos avermelhados (origem provável do seu apelido),tinha uma agilidade tremenda em suas pernas curtas. Como era tido como um VIRTUOSE da pelada cansava-se de tanto driblar os adversários, que começava a rir e às vezes perdia o domínio da pelota. Nunca pude perceber as condições financeiras de cada um deles. A maioria dos amigos residia na Rua do Alvo. Renato Andrade, o mais velho do grupo, já era estudante de odontologia e quando fundamos a Associação Recreativa Cruzeiro (ARC), escolhemos o Renato para presidente. Na casa dele, morava um rapaz, muito tímido, por nome Salvador, mas devido a reconciliação dos pais deles, foi levado de volta ao convívio dos mesmos e nunca mais o vi.

VIRTUOSE: pessoa que domina em alto grau o conhecimento  e a técnica de uma arte ou atividade.  Sinônimo de virtuoso.

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O Herbert, tocador de violão, sempre era visto com a sua peça musical e na hora em que o grupo se reunia, ele o dedilhava para gaudio de todos. Residia no casarão, que ficava quase em gente à casa de tia Edite. Naquela casa grande, que fora dividida por seu proprietário, em vários setores e compartimentos, abrigava várias famílias de diversos poderes aquisitivos. Havia uma parte que ficava abaixo do nível da rua e de lá vi muitas pessoas entrarem e saírem num vai e vem constante, durante o dia todo. Na parte média da casa, conheci de perto duas famílias;  a do meu colega de faculdade, Otávio Conceição Mendonça e do amigo Jamil Almeida Bagdede, filho de pai árabe com mãe brasileira.  Otávio, de pais negros, era filho único, pois nunca o vi referindo-se a qualquer irmão. Jamil, ao contrário tinha duas irmãs Alaíde e Kadije e um irmão de nome Osman. Herbert gostava de dedilhar o seu violão e certas vezes, ficávamos à porta da casa de tia Edite, a ouvi-lo. Alí também era o ponto de reunião do grupo, para contar as novas piadas, casos acontecidos na vida do bairro ou repassar os filmes aqueles que ainda não tinham visto. Vez por outra, aparecia outro amigo nosso, por nome Mário Gusmão, que não residia alí perto, mas gostava do nosso convívio salutar. O irmão dele por nome Osvaldo, não chegou a frequentar a nossa roda, pois era homem feito e certamente achava-se bem “grande”, para ficar ao nosso lado. Uns amigos de Renato, chamados de Osmar e Grimaldi,  apareciam naquelas bandas, porém nunca participaram de perto do nosso grupo. Éramos viciados em assistir filmes nos cinemas Jandaia, Aliança e Pax, por serem mais  próximos e mais baratos e quem não assistisse, certamente iria saber dos conteúdos através dos amigos do grupo. Jamil que era de todos, o que se dedicava a apreciar até os nomes dos diretores, produtores e o pessoal técnico dos filmes, além de repassar para nós, inventava também outros, principalmente os de mistério, muito em moda naquela época.
Nos meses de abril, maio e junho, todos os anos  lá na Cidade Baixa, eu começava comprando 10 a 20 cruzeiros de fogos de artifício, tipo estrelinhas, cobrinhas, busca-pé, foguetinhos, traques, bombinhas e outros de menor poder de fogo, como tiras de coió, traques de massa e os revendia na porta de casa, aos garotos da redondeza. De inicio, eu preparava uma caixa de madeira de sabão massa (hoje o sabão vem acondicionado em caixas de papelão); fazia prateleiras, a fim de dividir o espaço da caixa e a enfeitava com papel de seda, para torná-la mais atraente. Chamavam-na de “Rifa” e durante aqueles três meses eu ganhava um dinheirinho até razoável. No principio, como o capital ainda era pequeno, me obrigava a ir todo o santo dia à Cidade Baixa, a fim de repor a mercadoria revendida. Mas, aos poucos com o crescimento e com os lucros obtidos, uma vez por semana, era o suficiente. No dia de São João, saía com a turma a às vezes era até procurado por pessoas adultas, e eu os atendia gentilmente, tendo que naturalmente retornar em casa de tia Edite, onde já deixava a mercadoria bem fácil e tia Licinha era a fiscal, para ninguém bulir.
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terça-feira, 12 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p 11)

No dia 8 de maio de 1945, acordei com o barulho dos sinos ecoando ao longe. Alí próximo de casa, um foguetório ensurdecedor. Minutos depois, fiquei sabendo através de vovô Manta, que a segunda guerra mundial estava quase terminada. Os alemães haviam assinado o tratado de rendição.
Nesse mesmo ano, a cegonha rondara mais uma vez a casa dos meus pais, em Iguaí. O caçula agora era o Almir e assim a prole aumentou de novo.
Em 14 de agosto desse mesmo ano, o Imperador Hiroito do Japão, assinou um decreto ordenando o cessar fogo e deposição de suas armas. Não sei se foi por vingança ao que acontecera em 1941, naquele ataque traiçoeiro a Pearl Harbor. O certo é que os americanos despejaram duas bombas atômicas, nas cidades japonesas de Nagasaki e Hiroshima, havendo uma mortandade incrível e tal foi a intensidade da destruição, que provocou a rendição imediata . Finalmente a segunda guerra mundial chegara ao fim.
Dali a dois anos, Mamãe encerraria o seu ciclo de partos com o nascimento de Acyr, que se tornara o caçula definitivo das família.
Durante o mês de maio de 1947, os jornais e noticias dadas pelo rádio, além da guerra, as principais, eram à respeito do eclipse total do sol, que seria visto em todo o Brasil, no dia 20 de maio. À medida que os dias se passavam, apareciam dados de como as pessoas se prepararem para observar o eclipse. De minha parte, instalei na parte acimentada do quintal da casa de tia Edite, um dispositivo contendo uma bacia grande de alumínio, que fora usada por minha avó Amália,há muitos anos atrás. Coloquei uma boa quantidade de água e tia Licinha arranjou-me um bom pedaço de vidro, que enfumei-o com papel de jornal, queimado. Eram mais ou menos uma nove horas da manhã do dia 20 de maio de 1947, quando a manhã ensolarada, começou a ficar amarelada e aos poucos foi ficando lusco fusco. Interessante de se notar, é que tia Edite comprara há alguns dias atrás, dois franguinhos e eles quando sentiram o dia ficar aos poucos mais escuro, começaram a se empoleirar em uns galhos de um pequeno arbusto existente no quintal. Observei atentamente, ao mesmo tempo, o dia escurecer. notando-se algumas estrelas no céu e olhando pelo vidro, vi  aquela bola (o sol, no caso)ficar  preta totalmente. Foi um espetáculo  inesquecível.A empregada ficou com medo e não quis apreciar aquele momento tão único em nossas vidas.
Abaixo, copiei um relato de como aconteceu aquele eclipse:


“Belo”, “magnífico” e “fantástico”. A despeito dos muitos adjetivos utilizados
nos relatos sobre eclipses totais do sol, as ações que visavam à organização de
expedições científicas para suas observações envolviam um complexo planejamento. O
eclipse total do sol é um fenômeno natural que despertava um grande interesse
científico. Instituições e pesquisadores de diferentes nacionalidades, junto aos seus
órgãos governamentais, trocavam informações com as administrações dos países nos
quais ia ser possível ver o eclipse total, com o objetivo de conseguir dados que
possibilitassem a constituição e envio de expedições para a realização de observações
do fenômeno.
Na manhã de 20 de maio de 1947 a sombra da lua, que encobria o sol, projetada
na Terra surgiu no Oceano Pacífico, com cerca de 200 quilômetros de diâmetro, rumou
para o leste, encontrou o continente sulamericano em Santiago, no Chile, avançou em
direção ao nordeste, passou pela Argentina, pelo Paraguai, entrou em terras brasileiras,
atravessando diversos estados, atingiu o Oceano Atlântico, deixando o território
brasileiro pelo Estado da Bahia, e chegou ao continente africano através da Libéria,
perdendo suas forças na costa Leste da África, quase no Oceano Índico.
O eclipse total do sol de 1947 despertou o interesse de institutos de pesquisa
internacionais devido a algumas particularidades que este evento possuiu, o que
ocasionou o envio de expedições das mais distintas nacionalidades ao Brasil. A faixa de
totalidade ia cruzar cidades brasileiras que ofereciam opções de acesso a bons pontos de
observação (os quais ainda passariam por estudos mais detalhados), e que tinham, ao
menos a maioria, postos meteorológicos que podiam fornecer os históricos climáticos
das regiões que eram cogitadas como possíveis locais para os cientistas ficarem
instalados. 
Aí por volta de  novembro de 1947, surgiu  a notícia de que seria construído o Estádio da Fonte Nova, num local próximo ao Dique do   Tororó.  Salvador estava mesmo precisando de um estádio de futebol, maior. O único existente fora construído há muitos anos atrás, no bairro da Graça e já não acomodava suficientemente os torcedores, principalmente com jogos amistosos, contra times do Rio de Janeiro ou  de São Paulo. Certa feita, fui assistir um jogo entre Fluminense do Rio de Janeiro e o Galícia da Capital, que fiquei muito mal acomodado, com tal quantidade de pessoas que foram ao Estádio da Graça.
Na área que resolveram fazer a construção do novo estádio, era um local que sempre nos servia para os babas  dos estudantes e dos moradores daquela região.
Não sei explicar ao certo se naquela tarde, tive muita sorte ou muito azar. O nosso joguinho de futebol  transcorria normalmente, quando repentinamente, ao dar um chute na bola com o meu pé esquerdo, senti o  mesmo pesado. Sentei-me ao chão e fui olhar o pé. O que nós vimos e todo  mundo ficou estarrecido é que um prego enorme que o pessoal chamava de “prego cabral”, com cerca de 10 a 15 centímetros, estava enfiado na sola do meu pé, debaixo da pele, paralelamente entre ela e os músculos. Os colegas do baba prontificaram-se a retirar o prego cautelosamente, de modo que não houve ferimento algum e arremessaram o mesmo para bem longe , para não acontecer de novo com outra pessoa. Levantei-me e o baba continuou.
Mas o prego viera dar uma espécie de aviso, porque depois de uma meia hora de baba, eis que ao chutar uma bola, errei e mandei o mesmo pé em cima de um monte de terra dura. Foi uma dor insuportável. Em poucos minutos, o pé ficou tão inchado, que não coube mais dentro do tênis. Fui para casa mancando e descalço. Ao chegar em casa, a empregada de tia Edite, colocou MASTRUÇO no local e enrolou o pé com um pano.
MASTRUÇO OU MASTRUZ: Erva fétida, cultivada pelas propriedades excitantes, peitorais e vermífugas. Mentruz.
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Dias depois, aconteceu a viagem mais demorada de minha vida. Saí de Salvador, num navio que iria até o terminal de São Roque. Era uma segunda feira e um dos colegas de viagem, disse que saltaria Santo Antônio de Jesus e que não gostava de viajar mesmo. Quando eu falei  que a minha levaria três dias maçantes, ele quase não acreditou. Assim que o navio aportou e passamos ao trem, sentimos que na primeira hora, este estava   apresentando algum defeito mecânico. Era uma viagem “amarrada”, vagarosa e justamente quando chegamos em Santo Antônio  de Jesus, local onde o colega saltou, o chefe do trem, avisou em todas as classes, que iríamos ficar ali parados pelo menos por umas duas horas. Pedimos então, para passear na Cidade e ele nos tranquilizou de imediato dizendo:
---“Assim  que o defeito seja sando, daremos um pito bem longo para que todos ouçam e saibam que iremos partir,”
O incidente aconteceu mais ou menos  às onze horas e aí fomos conhecer a Cidade. Perto do meio dia a fome começou a dar sinais, através de roncos do estomago. Eu acordara por volta das cinco horas e tomara um gole de café da garrafa térmica, com um pedaço de pão amanhecido.
No grupo que estava comigo passeando, havia um casal de jovens em lua de mel, tal o chamego de um  com o outro e mais dois rapazes mais ou menos da mesma idade minha.
Resolvemos então de comum  acordo, ir almoçar. Naquela época, ainda não havia o tal de “selv serfice”, ou comida a quilo. Fomos indagando aqui e ali, até  chegarmos a um local cujo almoço  foi razoável. Feijão e arroz, salada de tomate com alface, galinha ao molho pardo e carne seca com cebola. Também  ainda não existia o célebre  PF, mas que parecia, sim, parecia e muito. Depois de satisfeitos voltamos ao trem par tirarmos uma soneca. Já era mais de 16 horas, quando fomos despertos por um apito bem longo, tal qual o chefe dissera horas antes. A viagem seguiu em frente  até chagarmos em Jequié com o dia raiando. Gente,  chovia de fazer inveja aos habitantes do Saara. Naquela  manhã de terça feira, fui recebido na estação, por um moço moreno, aparentando seus trinta e poucos anos, que se apresentou com o apelido  de Zuca, pessoa que eu esperava encontrar, pois Papai havia antecipado o avido por carta. Possivelmente era algum conhecido de Papai, que de imediato me conduziu num táxi até a residência dele. A sua esposa, que acordara cedo e me mostrou o quarto para eu dormir devido ao cansaço da viagem.
Acordei depois das nove, onde já me esperava um lauto café. Não sei a profissão do Zuca,  nem também, onde trabalhava, mas o fato  é que por volta das dez horas ele apareceu dizendo:
“---Devido às fortes chuvas que estão caindo nessa região, será difícil, arranjarmos um caminhão hoje, para você prosseguir viagem. Ficarei atento e qualquer notícia, trarei na hora do almoço.”
E assim que ele chegou para o almoço, veio desanimado. Não aparecera nenhum transporte que seguisse para  o lado de Poções.
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No dia seguinte, quarta feira, Zuca conseguiu um caminhão, que partiria de Jequié após as 16 horas, mas não chegaria a Poções, no mesmo dia, porque a estrada  estava péssima, toda enlameada e esburacada. Iria pernoitar no caminho, em algum local razoável. Resolvi aproveitar a boa vontade dele e subi na carroceria do caminhão, sempre acompanhado de minha maleta. Após umas três horas de viagem, o caminhão atolou num buraco e não houve jeito de sair. Por sorte nossa , em sentido contrário, veio um caminhão que nos levou de volta a Jequié, lá chegando à meia noite. Andei um pouco e retornei à casa do Zuca. que me recebeu espantado. Fui dormir e na quinta feira, aí por volta das nove horas da manhã, um novo caminhão apareceu e mais uma vez, lá fui para cima da carroceria. A viagem seguiu vagarosíssima, pois as estradas estavam num estado  lamentável. Buracos em grande quantidade forçavam ao motorista se desviar para não cair neles e assim chegamos em Manoel Vitorino(antiga Cachoeira de Manoel Roque), próximo às cinco da tarde. O motorista estacionou à porta de uma pensão  e indagou se era possível hospedar todos aqueles passageiros. Instantes depois, ele avisou a todos:
“---A comida é boa, mas a pensão não dispõe de quartos suficientes. Quem quiser pegar outro caminhão para seguir adiante, não tem problema.”
Acredito  que naquela altura dos acontecimentos,  ninguém estaria com aquela coragem toda de seguir viagem à noite. O fato é que todos ficaram ali hospedados. Fiquei alojado em um dos quartos da frente da pensão, que possuía duas camas e sobre uma delas, avistei uma mala marrom. Aí prontamente ocupei a outra cama, fazendo o mesmo. Coloquei  a minha maleta sobre ela e fui a sala de jantar, que era uma sala vasta com uma série de mesas retangulares, ladeadas com vários bancos de madeiras de igual comprimento. Não havia cadeiras.
O jantar foi posto depois das vinte horas, porque a dona da pensão não estava esperando tanta gente de uma vez só. Notei que a sopa de feijão, com pedaços de macarrão, estava ótima, mas os demais pratos estavam encharcados de AÇAFRÃO e gordura. Por último foi servido café com  banana da terra, cozida. Quem estava vindo da residência do Sr. Zuca, onde a esposa dele PRIMOU com uma boa alimentação, para chegar naquele local e comer uma GOROROBA daquele tipo, só a pessoa com muita fome mesmo.

AÇAFRÃO: Erva da família das iridáceas, com flores geralmente amarelas, violetas ou brancas de cujo estigma se prepara o pó do mesmo nome, usado como corante tempero culinário e na medicina, como estimulante carminativo (contra gases intestinais) e antiespasmódico.

PRIMOU: do verbo primar. Chamar a atenção por sua qualidade. Destacar-se. Ser o primeiro. Ter primazia.

GOROROBA: Comida de má qualidade.  Bóia. Grude.
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Logo após o jantar, cada um dos passageiros foi se recolhendo e eu dirigi-me ao meu quarto, onde o companheiro que nunca cheguei a conhecer, já estava roncando.
Não sei precisar as horas, pois não tinha relógio, mas aconteceu o inesperado. Minha barriga começou a doer, prenunciando que alguma coisa de errado iria acontecer. A principio hesitei em levantar-me, mas as dores intestinais aumentavam intensamente. Sem fazer barulho e me guiando pelo local que havia posto a maleta, fui até lá e consegui abri-la, de onde retirei um bom pedaço de papel comum de embrulho (naquela época ainda não havia papel higiênico).Dirigi-me ainda vagarosamente, até chegar perto da porta do quarto, apenas por questão de poder localizá-la, para uma necessidade maior. Abaixei-me ali perto e descarreguei tudo o que era possível. Limpei-me e não dormi mais. A minha preocupação agora era de ver o dia clarear para me safar o mais rapidamente do quarto. A chuva miúda caía lá fora e o dia estava clareando aos poucos. Levantei-me, peguei a maleta e fui esgueirando-me em direção à porta. Consegui abri-la e ao passar para a sala, verifiquei que muitas pessoas dormiram por ali mesmo. Era uma situação vexatória. Galguei finalmente a sala grande, que  servia de refeitório  e atravessei-a,  dirigindo-me aos fundos, onde se achava uma pia com torneira. Primeiramente coloquei a maleta em baixo de um dos bancos, sentei-me e debrucei-me sobre a mesa, apenas para fingir que dormira naquele local. Aos poucos o pessoal foi despertando e se dirigindo ao lavatório, o que  fiz também. Quando a dona da pensão apareceu para arrumar as mesas e providenciar o café da manhã, meu anonimato ficou conservado. Não sei dizer se o meu companheiro de quarto era ou não, passageiro do caminhão. Também não ouvi comentários à respeito. Sei que depois do café e acertarmos as contas, rumamos  à Poções e chegamos perto das treze horas pelas conversas que ouvi entre os passageiros. O caminhão parou na Praça Deocleciano Teixeira e dali segui andando até a pensão do Sr. Arlindo Carvalho. O rapaz que Papai enviara para servir de companhia, já estava alojado desde quarta feira e só fui chegar no principio da tarde daquela sexta feira. À tardinha, a Praça Deocleciano Teixeira, já estava toda tomada com as barracas para a feira do dia seguinte, sábado. `A noite, o rapaz não quis, mas eu fui sozinho ao Cine Santo Antônio, assistir um filme de caubói, muito em moda naquela época. A casa de espetáculos cinematográficos, ficava situada numa rua,  chamada de Felix Gaspar, que depois de muitos anos, teve o seu nome mudado para Olímpio Lacerda Rolim, em homenagem a um dos seus ex-prefeitos, que ali também residiu com a família por muitas décadas.
No sábado, depois do café, o rapaz atrelou os nossos animais e passamos pela praça onde os fregueses, começavam a frequentar as barracas armadas na véspera. Passamos por Morrinhos sem maiores  complicações, mas a medida que fomos descendo para a zona da mata, observei que  as chuvas que haviam caído, fizeram subir o leito dos rios. De modo que atravessávamos com os pés suspensos. Em cerros trechos, a água banhava  levemente a barriga dos animais. Mesmo com toda a cautela, vez por outra, o animal escorregava, dando uma sensação desagradável. O guia, por sinal muito bom, seguia à frente escolhendo os melhores lugares e próximo às três e meia da tarde, ele fez sinal para ali ficarmos, dizendo:
“---Dr.  Ary recomendou-me que ficássemos aqui, para passarmos a noite. O dono da casa está ciente de nossa chegada .”
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   Havia um relógio daqueles antigos, numa das paredes da sala. Era em forma de oito, onde na parte de cima, existiam os ponteiros de marcar as horas e minutos e na parte inferior, situava-se um pêndulo naquele vai e vem constante. Ele marcava 15 e 35. A dona da casa surgiu à nossa presença e foi logo dizendo:
“---Vou preparar um café reforçado para vocês e a “janta” será “caprichada.”
Tomamos um banho chamado de “banho de sopapo”, que consistia em você receber um balde com água acompanhado de uma cuia feita com a metade da lata de um ex-queijo , que servia para despejar  a  água do balde sobre a sua cabeça e o seu corpo.
Depois das sete horas, o jantar foi servido, onde  enfrentamos uma salada de tomate com cebola branca, arroz, feijão verde e um ensopadinho de galinha de quintal, hoje chamada de “galinha  caipira”. Em seguida, apareceram leite fervido e quente, café, cuscuz de milho e batata doce cozida. Fomos dormir cedo, porém, lá pelas ”tantas”  da madrugada, despertei com um cheiro forte. O pessoal da redondeza fora chamado, para ajudar a torrar e pilar café e aquele serviço era feito com o pessoal cantando sempre. Não sei o tempo que levou para terminar o trabalho, mas o certo  é que só  reconciliei o sono, após o silêncio total.
Após acordarmos e tomarmos o café matinal, fomos enfrentar aquele domingo de sol  e por volta de meio dia chegamos finalmente em Iguaí.
“---Meu filho, há quanto tempo ! “ --- exclamou Mamãe ao me ver chegando em casa.
Essa foi uma viagem que começou numa segunda feira à partir das cinco horas da manhã e só foi terminar no domingo ao meio dia, demonstrando que naquela época, década de 40, o Brasil e principalmente a Bahia, estavam atrasados no setor de transportes. Foi uma viagem de Salvador a Iguaí. Abrindo um parêntesis só para servir de comparação.
(Há alguns dias atrás, Noélia e eu, saímos de João Pessoa( Capital da Paraíba)num avião, às 4 horas da manhã.
 Ficamos em Recife, por mais uma hora onde entramos em outro avião e seguimos a Salvador.
Ali, esperamos no aeroporto umas quatro horas, até chegar o horário de seguirmos à Vitória da Conquista. Como meu genro e minha ,sabiam de nossa chegada, antes das dezesseis horas estacionamos o veículo na porta de casa, em Poções,) Se não fosse o problema ainda, de ficar esperando em cada aeroporto, o horário de embarque, gastaríamos em horário corrido, pouco mais de duas horas, de João Pessoa até aqui.

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sexta-feira, 8 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p 10)

No ano de 1944, passei por uma experiência nova. Assim, é que na volta de Salvador para cá, já haviam inaugurado um terminal marítimo no porto de São Roque. Dessa forma, o navio que fazia aquela rota, não mais iria até Nazaré. Os passageiros desciam em São Roque do Paraguaçu e ali mesmo pegavam o trem, que os conduziriam até Jequié. Portanto, uma viagem que até então, era feita de Salvador a Iguaí, em quatro dias, ficou reduzida a três. À principio, comprava-se um bilhete em Salvador até São Roque e um outro dali até Jequié, mas algum tempo depois, já se podia adquirir o bilhete na Navegação Bahiana,  dando o direito de viajar de navio e em seguida no trem, ou vice-versa. Nessa primeira viagem, uma peça do trem, quebrou-se e ficamos parados em Jequiriçá, por muito tempo e quando chegamos ao final da viagem em Jequié, o dia estava clareando. Com o TIQUETE da bagagem, chamei um “carregador” que levou a minha mala e me conduziu até a ponte que fica sobre o rio de Contas, onde por sorte, peguei  logo um caminhão que me deixou na porta da pensão do Sr. Arlindo Carvalho. No dia seguinte, em companhia do guia que Papai providenciara, para me esperar e conduzir até Iguaí, saímos cedo e mesmo com as dificuldades existentes no caminho, como passagens de rio cheio, onde, para  não molhar os pés e as pernas, nos forçavam as suspendê-las, pois a água do rio, chegava até a barriga dos animais. Afora isso, chegamos ao fim da jornada sãos e salvos, sem nenhum incidente.
Antes do Natal, soubemos que uma cigana, com bola de cristal, cartas de tarô e outros artefatos usados por  elas, estava hospedada na pensão de Dona Raquel. A notícia espalhou-se rapidamente entre nós adolescentes e assim, logo na primeira noite de atendimento, um bom grupo de rapazes e moças, juntou-se à porta da pensão, onde tivemos que fazer fila. Leitura de mão era o preço mais barato e à medida que fossem incluídas outras modalidades, o pagamento era maior. Preferi somente a leitura de mão, pois um  rapazola de apenas 14 anos, não dispunha no bolso, desse dinheiro folgado, para gastar com uma cigana.
Era uma cigana morena, de olhos verdes, aparentando ter mais de 40 anos. Trazia sobre a cabeça, um pano de seda branco. Nas orelhas, duas argolas, tipo moedas, de cor dourada. Sobrancelhas cheias, num rosto extremamente redondo. Fora bem bonita, quando mais jovem, pois ainda trazia vestígios parcos de estar próxima ao CLIMATÉRIO.
Sentei-me em sua frente,  separados apenas, por uma mesa de madeira, quadrada. A seu pedido, coloquei a minha mão direita, com a palma voltada para cima. Ela, com a sua mão esquerda segurou os quatro dedos de minha mão, deixando livre apenas o polegar. Com a outra mão, ela foi analisando o que via e depois de alguns segundos, começou mais ou menos assim:


TIQUETE: cartão, bilhete ou comprovante, que garante acesso a receber um objeto, previamente entregue. Serve também, para facilitar a entrada em alguma diversão pública.

CLIMATÉRIO: Período correspondente à menopausa ou a declínio sexual e que se caracteriza por um conjunto de modificações orgânicas e psíquicas.

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---”Rapaz, você não mora nesse lugarejo. Confirme com a cabeça se estou certa ou errada.”
Balancei a cabeça afirmativamente, porque de fato praticamente eu residia em Salvador. Eram dez meses cuidando dos meus estudos , enquanto em Iguaí os dois meses de férias, entre os meados de dezembro até fevereiro.
Ela continuou:
“---Essa sua namorada, irá viajar e nunca mais vocês se verão.”
Na praça, onde nós morávamos, a casa já era própria, pois naquele período residindo na Vila, Papai começou amealhando algum dinheirinho e paulatinamente foi aplicando na construção da casa, não mais ficando sujeito a pagar aluguel. Do lado direito, morava uma família, onde o filho mais velho de apelido Fuá namorava uma das gêmeas, que estava passando algum tempo em Iguaí e o pai delas havia alugado a casa do lado esquerdo da nossa. A outra gêmea era justamente a minha namorada. Um mês depois, ou seja em princípios de janeiro de 1945,a família viajou e nunca mais  retornou a Iguaí.
Naquela noite, pela segunda vez, a cigana acertara em cheio. E ela, continuou:
“---Em sua vida profissional, daqui a alguns anos, não irá ganhar muito dinheiro. Isso quer dizer: não ficará rico. Terá apenas o suficiente para manter a sua família tranquila. Finalmente estou ainda vendo em sua mão, que a linha da vida o conduzirá até 99.”
Essa última frase me deixou intranquilo por diversos anos. De fato, como dentista, não ganhei muito dinheiro. Trabalhei na Câmara de Vereadores durante 35 anos, no período compreendido entre 1959 e 1994 e todos sabem que qualquer funcionário municipal, não tem lá esses rendimentos (a não ser aqueles que fazem parte das maracutaias dos governos fraudulentos). Lecionei também no Ginásio de Poções, mais tarde CNEC e mais três anos no IECEM, totalizando 43 anos, sendo a maior parte dos rendimentos, pagos pelo Governo do Estado da Bahia. E mais uma vez, confirma-se aquela velha história, que o Professor se sacrifica para ajudar os outros. E a cigana , aí, também não errou.
Sobre a linha da vida citada por ela, há o fato que passei o ano de 1999 todo MACAMBUZIO e quando Noélia e eu comemoramos a passagem daquele, para o ano 2000, disse comigo:
---Esse 99, citado pela cigana, já se foi. E é o que resta para a cigana acertar. Que 99 será esse?
Espero que Deus me dê muita saúde, para que eu possa atingir em breve, os meus jovens 99 aninhos e em especial na companhia de minha querida Nó.”

MACAMBUZIO: Que apresenta tristeza. Que possui  temperamento fechado, taciturno e melancólico

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Em fins de fevereiro de 1945, tio Júlio estando em Poções, mandou um recado a Papai, que estaria me esperando a fim de seguirmos à Salvador.
Como a estrada de rodagem, Poções-Iguaí estava precariamente construída, Papai conseguiu para mim, um lugar na boleia de um caminhão que faria aquele percurso, saindo depois do almoço. Sentei-me ao lado de uma garotinha de uns cinco anos, que por sua vez, estava ao lado da mãe. O marido era justamente o motorista e proprietário do caminhão. Na carroceria viajavam pelo menos, umas quinze pessoas. Quando passávamos por Nova Canaã, já próximos a  subir a serra , eis que o tempo fechou com relâmpagos, raios e trovões com prenúncios de um chuva copiosa. De onde estávamos na boleia, ouvíamos gritos histéricos das mulheres medrosas  que estavam na carroceria. Em dado momento, o caminhão caiu num buraco, pois  a quantidade de água que descia pela estrada, impedia a visibilidade do motorista. Ele e o ajudante desceram e tentaram ver de perto as condições de safar o veículo do atoleiro. Como a chuva aumentava de intensidade cada vez mais, o motorista voltou à cabine e avisou a todos que iria esperar a chuva melhorar. Tal não aconteceu, pelo menos na primeira hora. Depois que a chuva  AMAINOU mais, o motorista e  o ajudante tornaram a verificar as condições do caminhão dentro do buraco e observaram que com a enxurrada forte que descia, era impossível  trabalhar, naquelas condições, mesmo com a ajuda de alguns passageiros. Então os dois saíram do local e instantes depois voltaram, dizendo aos passageiros que encontraram uma casa ali perto, cujo dono se prontificou a dar abrigo a todos. Como na zona da mata, escurece mais rápido e ainda mais com aquele tempo horroroso, aceitamos a passar a noite na tal casa que era coberta de palha. Havia um sala bem grande, que possivelmente fora assim feita para a secagem dos grãos. Lá no fundo, havia uma porta que dava acesso a um quarto e uma cozinha com um fogão de barro. Como havia uma montanha de achas de lenha, empilhadas  num dos cantos da sala, alguém teve a ideia de distribuí-las entre os passageiros para com elas fazer a sua própria cama. Sempre eu usava um chapéu  de feltro que Papai já comprara há bastante tempo,para usá-lo nas viagens de trem, pois a poeira estragava o nosso cabelo e ele me serviu de travesseiro, horas mais tarde.
Vamos fazer agora uma pequena pausa para meditação;


---Alguém que está lendo esta autobiografia,  já teve a oportunidade  de dormir em cima de lascas de lenha, tendo como travesseiro um pequenp chapéu de feltro ?
Com o consentimento do dono da casa, acenderam uma pequena fogueira bem no centro da sala, para que ninguém sentisse frio.
O nosso jantar, constitui-se de  um pedaço de requeijão com mel,  farinha e uma caneca d’água , pois um dos passageiros que trazia aqueles alimentos no caminhão, resolveu vender a cada companheiro de jornada, um pouco daquilo.

AMAINOU: Do verbo amainar. Diminuir a força do vento, do mar, da chuva, etc.
 Tornar sereno.    Acalmar.
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Lá fora, sentíamos  que os trovões não eram muito intensos mas a chuva caia incessante. Durante um bom tempo, muitos passageiros, conversaram sobre diversos assuntos, mas  as horas foram passando e houve a necessidade imperiosa de dormir. Deitar em cima daquelas achas de lenha foi um sacrifício enorme, mas que jeito. Acomodei-me como pude, fazendo o próprio chapéu de travesseiro. Dormi. Para não deixar a fogueira apagar-se definitivamente, alguém teve o cuidado de estar sempre olhando e quando sentia que o fogo estava baixando, saía pelos quatro cantos da sala, solicitando de cada passageiro, uma lasca de lenha de sua linda cama. Com isso, o sono era interrompido  e voltar a dormir com menos um pedaço da “cama” , era por demais, doloroso. Tal fato se repetiu mais uma vez no decorrer da madrugada e estava torcendo para que o dia logo amanhecesse. Quando estava sentindo que aquele sofrimento iria terminar, eis, que próximo a mim, comecei a ouvir uns piados. Pus os meus ouvidos bem à escuta, para saber ao certo, de que lado,  partiam aqueles piados. Lá ao centro, a fogueira, mais uma vez, estava se apagando, entretanto, comecei a perceber os primeiros ALBORES do dia. Como os piados à minha volta estavam aumentando, resolvi  logo enfrentar naquela penumbra, o inimigo piador. Mas ainda não dava para enxergar direito. Fiquei escutando tranquilamente, enquanto comigo mesmo pensava:
---Será alguma cobra, que por causa da chuva rastejou para cá?”.
O fato é que em dado momento, com a mão esquerda, num lance bem rápido, agarrei alguma coisa quente. Trouxe para perto de mim e observei que  eu pegara simplesmente no pescoço de um filhote de perua, que se desgarrou  do ninho e ficou procurando abrigo.
O pessoal começou a levantar-se e alguém veio anunciar que por causa da chuva, ele descobrira um pequena córrego com água límpida, que daria para todos fazerem o seu asseio pessoal, como escovar os dentes e lavar o rosto.
Depois que todos se “arrumaram”, conseguiram desatolar o caminhão e seguimos viagem em jejum até Poções e quando chegamos na Praça Deocleciano Teixeira, havia uma quantidade de pessoas fora do comum, aproximando-se do veículo. Conversas  para lá e para cá, conseguimos averiguar, que correu uma onda de boatos pela cidade, onde houvera um acidente conosco, lá nas “Sete Voltas”.
Peguei  a minha maleta e segui direto até a “República dos Viajantes”. Tio Júlio não estava e a moça que me atendeu disse que o mesmo havia saído. Deixei a maleta no quarto e avisei à moça que eu iria à Pensão do Sr. Arlindo Carvalho, almoçar, pois estava com uma fome incrível.
Paguei o almoço e ao retornar encontrei tio Júlio meio preocupado com os boatos que ouvira.
---“Que foi que houve, Dydy?” Desde ontem estava à sua espera e como você não apareceu, hoje cedo mandei um recado para Ary.
Com poucas palavras contei-lhe o que ocorrera.
ALBORES OU ALVORES: claridade fraca ou efêmera. Primeira luz do amanhecer.
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quarta-feira, 6 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p9)




No dia seguinte, após o café matinal, despedi-me  do pessoal, pois Bernardo Messias, iria levar-me até a pensão do Sr. Arlindo Carvalho, porque o meu guia havia acordado cedo e colocara os animais em frente a porta , aguardando a minha chegada, para seguirmos viagem.
Após os agradecimentos ao Sr. Bernardo Messias, partimos para Iguaí, onde há dez meses eu saíra.
Nos dois meses de férias, procurei ajudar Papai na farmácia. Durante a semana, o movimento era fraco, mas ao chegar sexta-feira o ajudante e eu, nos desdobrávamos fazendo pacotinhos de alfazema, sene, de iodofórmio em pó, rui barbo e preenchendo latinhas de 50 gramas de vaselina. Pacotes maiores com bicarbonato de sódio, sulfato de sódio, magnésia em pó, eram também preparados e colocados em gavetas  maiores e separadas. No sábado, durante a feira, no período de 7 às 14 horas, o movimento era intenso e a procura maior, além  dos produtos acima citados ,envolviam aqueles populares, como Saúde dos meninos, Saúde da mulher, Biotônico Fontoura, Capivarol, Emulsão de Scott, Aguardente alemã ,Cafiaspirina e muitos outros.( sem fazer alusão à propaganda).
Quase ao final da feira, Tezinha, a cozinheira vinda de Maragogipe, chegava à farmácia, com o recado de Mamãe, para que eu procurasse milho e farinha, a fim de preparar durante a semana vindoura, a comidinha  das galinhas. E todos os sábados, aquela história se repetia e as nossas galinhas eram super.  bem tratadas. Mamãe se esmerava nesse mister e os ovos eram recolhidos diariamente numa média de seis a doze, todos os dias.
Meu período de férias era bem dividido. Pela manhã, ajudava Mamãe a recolher ervas daninhas no quintal, que por sinal, perto da cerca era bem inclinado e descendo mais alguns metros,  a pessoa chegava à margem do rio Gongogi. Enquanto Mamã e rebuscava os ninhos atrás de ovos, eu recolhia os matos e colocava  num saco. Tezinha por sua vez, ficava na cozinha preparando o almoço, porque a pontualidade de Papai era de fazer inveja a qualquer britânico( dizem, que o povo inglês é o mais pontual do mundo. Se você marca um encontro para as dez, o inglês chega ás nove.)
Depois do almoço, nós dois seguíamos à farmácia e somente lá pela quatro da tarde, saía para encontrar a turma do “baba”.
À noite ,depois do jantar, novamente, Papai e eu saíamos juntos e íamos “ assinar o ponto” no bar do Sr. Manoel Pereira, para ficar a par das notícias do Brasil e do mundo.
Mas as férias acabaram e Papai recebeu um recado de tio Júlio, que já se achava em Poções e iria a Salvador nos próximos dois dias e assim lá fui novamente juntar-me ao tio. Mas, naquela mansidão dele, deu-me um chá de espera que fiquei em Poções, por quase seis dias e mais um em Jequié, pois havia negócios pendentes e a necessidade de recolher dinheiro, a fim de levar para as firmas em Salvador.
Em bora o atraso verificado no retorno da viagem, não alterou os meus planos escolares, pois o Liceu Salesiano do Salvador, sempre recomeçava as aulas nos primeiros dias março.
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No decorrer das primeiras aulas, observei que sempre no primeiro horário, aparecia um sargento do exército, que durante uns quinze minutos, começava a falar sobre assuntos da guerra que se alastrava na Europa. Em dias alternados,  um outro aparecia e retomava o assunto e aos poucos foram incutindo em nossas cabeças de crianças e pré- adolescentes, como reconhecer um fuzil e aprender os nomes de suas peças principais. Paulatinamente eles nos massificavam com os horrores da guerra, inclusive os torpedeamentos dos nossos navios.
Contavam que o Governo Brasileiro,  estava  se preparando para enviar tropas  à Europa, pois a Guerra já era de caráter mundial e os “Aliados”, estavam combatendo com unhas e dentes o poderio nazifascista.
Tal fato,  comentei em casa e vovô  falou que de fato o Governo Brasileiro estava prestes a mandar um contingente de soldados ao FRONT e a retaguarda teria que ser organizada daquela  forma.
---“Mas você é muito novo. Esqueça isso e vá continuando os seus estudos.”
Até o final do ano de 1942, tia Edite estava com os seus três filhos nascidos: Antônio Natalino viera em  1938, Maria da Conceição em 1941 e Carolina nesse mesmo ano.
No dia 4 de dezembro, fui acordado, quase aos sobressaltos, por minha prima Dalva, dizendo que vovó Amália havia falecido, depois de dois meses de sofrimento. Há principio, não acreditei, mas ao descer as escadas e chegando ao primeiro piso, encontrei o pessoal chorando e caminhando de um lado para o  outro.
Depois do café, ainda vesti a minha farda e me desloquei até o Liceu e na Secretaria dei a notícia e me dispensaram das aulas por dois dias seguidos.
Minha avó Amália era também a minha madrinha de batismo e desenvolvera uns hábitos interessantes. Acordava tarde e lá em cima mesmo, já tomava  banho e ao descer já passavam das dez horas da manhã.(Sei disso, porque aos domingos o ritual não se modificava).Alimentava-se de qualquer ingrediente que estivesse ao seu alcance e ficava pronta para o almoço, que era servido, assim que vovô voltasse  do Hospital da Polícia Militar.
Ainda com os rumores da guerra em minha cabeça, volta e meia, abordava vovô  e numa outra explicação ele disse:
“---Já lhe contei, que o Governo Brasileiro declarou guerra às Potências do Eixo e aí aos poucos começa a preparar os seus jovens, para uma futura necessidade, caso a guerra demore muito.”
A guerra que fora iniciada em setembro de 1939, passara dos três anos, já em caráter mundial, salvo para aqueles países que se declararam neutros.

FRONT:  Na  guerra, linha avançada do conflito, onde se travam batalhas e combates.

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Em março de 1943 nasceu Armando, que foi o único filho a não ter o sobrenome Manta. Papai para homenagear um dos irmãos dele, por sinal, já falecera muitos anos antes, registrou o meu irmão com o nome de Armando Alves Dias Sobrinho. Com a vinda dele, a nossa família ficou ampliada com Papai, Mamãe, eu , Aryolinda, Silvio ,Affonso, Osvaldo e Armando. O mano Osvaldo nascera em meados de 1941. E Armando em 31 de março, quando já estava em aulas em Salvador e só soube muitos dias depois, numa carta que Mamãe escrevera endereçada a tia Edite. Pelas notícias vindas de Iguaí, sabia que a estrada que ligava a Poções achavam-se em estado deplorável e sendo assim, continuava gozando as minhas férias de meio de ano, em Salvador.
Naquela altura dos acontecimentos, já frequentava algumas salas de cinema, sendo as mais próximas o Jandaia e o Aliança, onde registravam os mesmos esquemas: jornal Nacional, Jornal com notícias da guerra, trailers, dois filmes e seriados. Ia com o acompanhamento de alguns colegas da própria rua do Alvo.
Como sempre citarei a rua do Alvo por algum tempo, iremos mostrá-la com os seus principais arredores. Fazendo uma volta, começando pela direita da residência de minha tia Edite, encontrávamos  um convento da congregação de freiras da  “Providência”. Seguindo chegávamos  ao “Godinho”( uma zona com casas de classe média de pequenos recursos).Depois, um pequeno agrupamento de oitizeiros e a Igreja da Saúde, onde havia uma praça à sua frente e em seguida uma ladeira bem íngreme que terminava na Baixa dos Sapateiros. Seguindo ainda pela direita, retornava-se ao princípio da rua do Alvo.
Na zona do Godinho, conheci por muito tempo, os amigos Chico e Alemãozinho, enquanto na rua do Alvo, os primeiros amigos foram os irmãos Rui e Tó, que alguns anos, depois mudaram-se para o Rio de janeiro. Em sequência, sem mencionar os anos vindouros, fui conhecendo o Herbert, que gostava muito de dedilhar o seu violão; o Renato Andrade e sua família; o José Otávio Mendonça, que foi meu colega anos mais tarde, na Faculdade de Odontologia; Dulce Aninha, vizinhas do 42 e o meu inesquecível  amigo  Jamil de Almeida Bagdede, cujos pais e irmãos residiram numa casa em frente à nossa .

 Quando a nossa turma começou e se conhecer direito, organizávamos os nossos babas, ora com os  próprios colegas da rua e às vezes Saúde versus Alvo, ou Alvo versus Godinho e assim íamos levando a nossa vidinha tranquila, a não ser quando um guarda civil nos abordava, alertando que era proibido jogar bola em plena rua, a fim de não prejudicar os transeuntes e por azar nosso . a bola alcançar os vidros de alguma janela. Tendo em vista esses fatores, jogávamos com muita cautela e ao avistarmos um guarda ao longe, a turma toda se dispersava momentaneamente, até a passagem do mesmo. Logo após, o baba era reiniciado.

BABA: joguinho de futebol com algumas regras próprias, geralmente realizado em praias ou em locais, onde se possa  brincar, com uma bola de qualquer tipo.(De borracha, de meia, de couro ,de bucho de boi, etc)




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terça-feira, 5 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p8)


Durante  o ano de 1941, lia nos jornais, ou ouvia no rádio de vovô Manta, que alguns navios brasileiros estavam sendo torpedeados em pleno Oceano Atlântico,  por submarinos nazistas.
Mas houve quem contestasse aquelas notícias. Diziam esses, que os americanos, querendo forçar ao Brasil a entrar na guerra, faziam eles próprios,  os torpedeamentos. Vale frisar que o nosso Presidente da República, hesitava em declarar guerra às potências do EIXO.
No meio do ano, o Colégio concedeu férias  de quinze dias aos alunos, mas Papai escreveu a tia Edite que eu não fosse a Iguaí, pois eram quatro dias de viagem para lá, somando-se mais quatro para voltar, restariam apenas sete, o que tornaria a viagem muito desgastante. Dessa forma, no ano de 1941 e outros que se seguiram, as férias de meio de ano, foram sempre gozadas em Salvador. E aí aproveitando os ensinamentos de vovô Manta, aprendi a fazer balões e comecei um pequeno negócio em revender os fogos para São João, pois observei que a gurizada de Salvador gastava um bom dinheiro com fogos, à partir do mês de abril.
No dia 7 de dezembro de 1941, Pearl Harbor foi bombardeada traiçoeiramente pela aviação japonesa. Isso fez com que os Estados Unidos entrassem na guerra e para facilitar o deslocamento das tropas, solicitaram ao governo brasileiro, para que eles construíssem bases militares litorâneas. Salvador foi uma das capitais que cederam um espaço na Cidade Baixa, próximo aos Armazéns das Docas do Porto. Com isso, Getúlio Vargas, que era então o nosso Presidente da República, resolveu também declarar guerra às potências do Eixo.
O Liceu Salesiano do Salvador concedeu as férias do final de ano de 1941, em novembro, após o segundo semestre, mas esperei quase  até os meados de dezembro, aguardando a boa vontade de tio Júlio, o que aconteceu uns cinco dias antes do Natal. Mas tio Júlio esqueceu-se em avisar Papai para oi envio dos animais e por isso ficamos em Poções dois dias inteiros. Mamãe, todas  as vezes que esses problemas aconteciam, ficava fula de raiva, porque eu começava  a sujar mais roupas do que o necessário. Para não ficar sozinho na casa que abrigava os caixeiros viajantes, que o povo já batizara de “república dos viajantes “, tio Júlio recomendou-me que eu saísse pela Cidade. Como sempre aconteceu naquela época, a praça principal era Deocleciano Teixeira e nela ficam as melhores casas comerciais, constituídas com tecidos, ferramentas, padarias e farmácias. Assim, via-se os letreiros “Daniel José Alves” e “Abel Magalhães” que eram os nomes dos proprietários, enquanto outras postavam somente os sobrenomes, como “ Casa Sarno” e “Farmácia Rolim”.
O crescimento de Poções, era tão INCIPIENTE, que os anos se passavam e nenhuma mudança se via.

EIXO: Aliança formada em 1936 pela Alemanha e Itália (Eixo Roma-Berlim).É nome dado de “potências do Eixo”, ao conjunto da Alemanha, Itália e seus aliados na Segunda Guerra Mundial.

INCIPIENTE: Aquele que começa, que inicia ou fica estagnado.

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Em março de 1941, retornei a Salvador, em companhia do universitário Arlindo Martins, que alguns depois, tornar-se-ia médico.
Naquele mesmo ano em Iguaí, soube através de carta de Mamãe, que Papai e Tio Júlio, tornaram-se sócios, abrindo uma farmácia, sendo que um bom estoque de medicamentos, foi comprado em mãos de um comunista ferrenho, que residia por aquelas bandas. Ele com medo de ser preso,  pois o Presidente Getúlio Vargas, estava mandando prender todos os adeptos do
INTEGRALISMO E DO COMUNISMO, assim que se desfez da mercadoria, sumiu no mundo.
Papai e tio Júlio, com sorte, conseguiram alugar no centro da praça principal, uma casa, que até então, servira como bar de jogos de sinuca e bilhar. Feitas as referidas mudanças e limpeza total, instalaram a farmácia e aos poucos foram ampliando o estoque, com a compra de balanças de precisão e copos milimetrados,  para mais adiante fazerem produtos manipulados.
Era um dos sonhos de Papai, abrir uma farmácia, porque ali mesmo, nos fundos , ele consultava os clientes, receitava e vendia os remédios, ora com produtos de fábrica e às vezes, preparados ali mesmo .
Estava recordando os velhos  tempos de balconista na casa de ferragens Eduardo Fernandes.
Quando  voltei ao final do ano de 1941,  tio Júlio conseguiu em Jequié, um caminhão que me trouxe até Poções, recomendando-me que ao chegar em Poções, pedisse para saltar  em frente à pensão   do Sr. Arlindo Carvalho. pois uma pessoa estaria ali aguardando a minha chegada   .E de fato, quando eu desci da BOLÉIA  do caminhão, um senhor gordo, meio avermelhado, parecido a principio, até com o Sr. Arlindo Carvalho, apresentou-se como sendo Bernardo Messias e de imediato me conduziu à sua residência. Lá, eu conheci  a sua esposa, por nome Enedite e seus dois filhos pequenos: Carlos Ney e Rosa Maria.( O outro filho Leonel, só iria nascer  anos mais tarde).
Depois de um banho bem gostoso, fomos jantar, que começou  com uma sopa, que Mamãe batizara com o nome de “Juliana”. Eram diversos tipos de verdura cortadinha em pedaços bem pequeninos.. Em seguida, fomos servidos com café com leite, cuscuz de milho e batata-doce frita. O resto da noite, até a hora de dormir, fiquei sentado no tapete da sala, envolvendo o pequeno Carlos Ney( aproximadamente com 3 anos de idade),com diversas brincadeiras. No quarto, Dona Enedite,  ninava Rosa Maria, a fim de que a menininha dormisse logo.

INTEGRALISMNO : movimento político de extrema direita, de inspiração fascista denominado
                                  AÇÃO  INTEGRALISTA  BRASILEIRA.
COMUNISMO: Doutrina que preconiza a coletivização dos meios de produção, a repartição equânime dos  bens  de  consumo e a supressão de classes sociais.

BOLÉIA: Assento do motorista ou dos passageiros do caminhão.



segunda-feira, 4 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p7)


E esse vai e vem nosso diário, ainda perdurou por um longo tempo. Dava-nos até um mal estar, porque logo após o almoço, passávamos obrigatoriamente, nas imediações daquele pardieiro, que  originariamente fora construído para servir à população no setor de saúde e encontrávamos pessoas imundas, doentes, feridas, sem que ninguém tomasse as necessárias providências , para sanar aquela degradação.
Passemos ao esporte: no período que fiquei em Iguaí entre 1939, 1940 e princípios de1941, assisti a bons jogos de futebol, entre o time da casa, contra equipes que vinham mais vezes de Nova  Canaã, esta, por ser mais próxima; Ibicuí, que mantinham um laço mais estreito entre ambos e raramente aparecia uma equipe de Poções. Essa última, como citei, era bem rara  em aparecer naquelas plagas, por causa da distância e também a dificuldade do transporte, pois não havia estrada de rodagem .
Muitos anos se passaram, para que figuras ilustres como Osmar de Campos Neto, Fernando “Bigode”Schettini, Dr . José Sabino Costa, Antonio  José  Luz, Vadinho alavancassem o esporte nesta cidade, começando a incutir das próprias crianças que o ideal  era o de começar desde cedo a organização dos times e dos torneios.
Enfim, o aspecto geral ficava muito a dever. Se você podia sair e viajar para as cidades próximas, era aquela dificuldade tremenda. Ir a Conquista e voltar no mesmo dia só se tivesse muita paciência. Caso você não tivesse condições de se deslocar até ali, ficava em casa sem energia elétrica durante o dia e por causa disso, não tinha geladeira, a não ser se comprasse daquelas que colocava-se querosene. Os outros eletro domésticos ainda não existiam. E o fogão à gás? Fogão á gás, o que é isso ?
Era o fogãozinho construído em alvenaria e chamado de “econômico”, na base da lenha, que para acendê-lo pela manhã , ainda havia o processo de se guardar com antecipação, muitas cascas secas de laranja ou de tangerina, que produziam um excelente combustível.
E a água para movimentar o serviço da casa ? Se você tivesse alguma posse pecuniária, mandava  construir um tanque e esperava São Pedro enviar chuva para abastecê-lo.
E se não dispusesse dessa grana preta, sabe onde iria encontrar água? Quando algum molecote, passasse ali por perto, tangendo três ou quatro jumentos sob o peso de alguns barris com água.
E assim se passava a vida dos moradores dessa  cidade.
Imaginem  também antes desse tempo?


                                                                               x.x.x


Meu tio por afinidade, casado com a minha tia Edite, irmã de Mamãe, chamava-se Júlio Dantas.
Como caixeiro- viajante, já transitava por essas plagas, com seus oito a dez burros  e mulas de carga, com um acompanhante, para tanger os animais e estes traziam em volta do pescoço, um cordinha com um sininho e à medida que andavam pelas ruas, produziam um som característico, que os comerciantes sabidamente conheciam.
Tio Júlio, representava algumas firmas de Salvador, inclusive a mais importante para ele, chamada  de Westphalen Back & Co e delas trazia, vários tipos de mercadoria para vender à vista aos fregueses físicos e à prazo para negociantes estabelecidos. E se também, as mercadorias eram de pequeno volume seriam entregues  no ato da compra.
Poções, era uma espécie de cruzamento, para  a zona da mata, representada pelos principais distritos de Nova Canaã, Iguaí e Ibicuí. Em sentido perpendicular a essa zona. tio Júlio seguia de Jequié, passando por Vitória da Conquista e estendendo-se até o norte de Minas Gerais.
Ele e o  seu ajudante hospedavam-se aqui em Poções na pensão do Sr. Arlindo Carvalho, até que alguns mais tarde, remodelaram bem no meio da ladeira, hoje conhecida como Cônego Pithon, uma casa para abrigar os COMETAS. Na subida daquela ladeira, bem logo atrás de referida casa, havia o cemitério local, onde hoje se encontra situada a Igreja Matriz do Divino Espírito Santo. Dali para cima só havia matagal.
Foi então, que durante as suas viagens, tio Júlio verificou que na zona da mata entre Nova Canaã e Iguaí, não havia nenhum médico estabelecido e em num de seus regressos à Salvador, incentivou a Papai a tentar a sorte naquelas plagas.
Um fato interessante que desde cedo chamou-me a atenção, foi quando aproximava-se o mês de junho, vovô Manta tinha uma devoção com Santo Antônio e rezava uma trezena do dia primeiro ao dia treze de junho e durante todas aquelas noites, logo após a reza, começava a confeccionar balões(hoje proibidos), que os  “soltava” nas duas noites dedicadas a São João. Nesse meio tempo, vovô preparava licores e na véspera de São João, ele listava os ingredientes da canjica, quando então, a cozinheira da casa, com seus braços fortes, munida de uma grossa colher de pau, mexia vigorosamente aquele mingau espesso até que ficasse no “ponto”.

COMETAS: o mesmo que caixeiro viajante.