sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p4)


Em 23 de agosto de 1939, Mamãe deu a luz ao mano Affonso, sendo assistida mais uma vez por  Vovô  Manta.

Papai recebeu a notícia por carta, dias depois, mas respondeu, dizendo que só voltaria em novembro, já com a intenção de levar a família toda para Iguaí.
Poderia não ser uma mina de ouro, mas para começar, seria uma boa tentativa.
Objetivando para que de novo eu não perdesse o ano escolar( eu estava cursando o terceiro ano primário),tia Dulce foi comigo até o Colégio Nossa Senhora de Lourdes e explicando a situação, solicitou a que fizessem as minhas provas finais, antecipadamente. O que foi feito e fui aprovado, para fazer  no ano seguinte, a quarta série do curso primário.
Assim, em fins de novembro, partimos para a segunda e por sorte nossa, a última aventura.
Observem  bem o tipo de viagem daquela  época.
No primeiro dia de viagem, embarcamos  num navio que no levou de Salvador  até Nazaré(antigamente chamada de Nazaré da farinhas, porque havia  um bom fabrico de farinha naquela   redondeza), num percurso que levou aproximadamente seis horas.  Pernoitamos numa pensão bem perto da estação ferroviária, porque no segundo  dia  de  viagem , quase às cinco horas da matina, o trem de ferro partiu da estação, com destino à cidade de Jequié. Foi uma viagem cansativa e aborrecida. Um trem vagaroso, poeirento, de vez em quando parava nas estações, que ficavam ao longo daquele trecho. Para encurtar a história, chegamos à cidade de Jequié perto das vinte e duas horas. Alguns carregadores de bagagem, ajudaram a Papai a arrumar tudo , numa espécie de veículo, que eles chamavam de taxi e dai rumamos para um hotel, se não me engano, por nome REX. E assim, se foi o segundo dia.
Assim, que raiou o terceiro dia, viajamos num automóvel, previamente contratado por Papai, que nos trouxe até POÇÕES, fazendo uma boa pausa, na pensão do Sr. Arlindo Carvalho , onde Mamãe cuidou dos asseios dela própria e das crianças menores. Em quanto isso, tomei meu café e fui até à porta da rua,  conhecer  de longe, aquela nova  Cidade. O sol batia bem de frente nas  paredes da pensão, mas naquele horário da manhã, nunca havia sentido tanto frio em minha vida. Ali encontrei  o Sr. Arlindo, o dono da pensão, um senhor baixo, gordo, bem avermelhado, que sentado numa cadeira, parecia estar esquentando-se ao sol.
Vi uma praça bem grande e lá no fundo, divisei uma igrejinha, quando naquele instante, dois padres caminhavam para lá.
---O senhor conhece aqueles dois padres? --- perguntei ao Sr. Arlindo ,sem cerimônia.
---Conheço sim garoto. O de cabeça bem alva, é o  Padre Pithon( foi aquela a única vez que o vi), que será substituído  pelo outro, que o povo, já está aprendendo a chamá-lo de Padre Honorato.
Depois desse breve diálogo, já com o pessoal todo arrumado, entramos no automóvel  saindo da frente da pensão pela esquerda, em direção à uma outra praça, ladeada de várias casas comerciais. Fomos até um povoado chamado Morrinhos, onde o automóvel nos deixou.

Ali, é que nós começamos a sentir o peso da viagem. Papai montou num burro. Mamãe, toda desajeitada, ficou em cima de outro. Um moço por nome Catarino, levou Affonso, agora com três  meses, enquanto um outro rapaz conduzia Aryolinda no cabeçote da sela.Um terceiro rapaz,  fazia o mesmo com Silvio Caetano. Fui sentado na  GUARUPA do animal, segurando o cinto das calças do rapaz ,que conduzia o seu animal.
Imaginem viajar naquelas condições, pela primeira vez durante 57 quilômetros. Felizmente para todos, é que a viagem  foi realizada em dois dias.
À tardinha, chegamos praticamente ao meio da jornada, em uma casa onde Papai certamente havia planejado todos os detalhes, com antecedência, pois tudo estava arrumadinho a nossa espera. Ali nos banhamos, jantamos e dormimos. No dia seguinte(quarto dia, portanto)logo cedo, após um reforçado café da manhã, seguimos definitivamente a Iguaí, lá chegando por volta das 16 horas. No percurso, havia muito rio para atravessar e isso dificultava e atrasava a viagem. Nos hospedamos na Pensão de Dona Raquel, porque a casa que Papai alugara, ainda estava nos últimos retoques de limpeza e pintura.
Como criança, não sente o cansaço, logo após o jantar, Zezito, um rapazinho dos seus 15 anos, filho de Dona Raquel, levou-me a um circo armado na outra praça. Iguaí, não possuía luz elétrica, mas o circo dispunha de um mortorzinho, que supria as necessidades dos seus funcionários, como também deixava a plateia à vontade.
Era um circo do tipo ,que hoje em dia é chamado de MAMBEMBE. Existiam dois palhaços, um malabarista, um ilusionista e umas moças vestidas de maiôs, que só apareciam, para mostrar os corpos. A primeira parte foi só de atrativos variados. Na segunda parte, o grupo encenou uma peça alusiva ao Natal, visto que o mesmo já estava próximo.
À partir daquele dia, ficamos esperando para passar à casa alugada. Mamãe foi andando comigo e verifiquei que a mesma era mais ou menos, assim disposta.  A sala da frente dispunha de duas janelas que eram voltadas para a rua. Havia uma saleta menor, logo após aquela sala e que dispunha de uma janela voltada para a parte lateral da casa . Foi nessa saleta que mais adiante  Papai  atendeu os  clientes. Seguindo  em frente pelo lado direito, estavam três quartos sucessivos, todos com a porta voltada para a sala de jantar e janelas para a outra parte lateral da casa. Em seguida ao último quarto vinha um banheiro com torneira. Ao lado da sala de jantar é que vinha uma cozinha ,que possuía uma porta, voltada para o quintal. Bem longe da casa ,próxima ao muro, havia uma pequenina construção que serviria às necessidades fisiológicas. Por isso mesmo, Papai teve que comprar urinóis que mandou colocar embaixo de cada cama.
GARUPA : A anca dos quadrupedes, especialmente dos equídeos.

MAMBEMBE  : Lugar afastado sem recurso, nem conforto.
                           Grupo teatral  itinerante de baixa qualidade  e formado por atores amadores.
                           De má qualidade ou pouco valor.  Ordinário. 


Quando Papai começou a entrosar-se no serviço médico, com o atendimento dentro da própria casa, apareceu Tio Júlio , trazendo de Maragogipe uma mocinha de seus quinze anos, por nome Tezinha, que veio trabalhar com Mamãe, para cuidar da casa e dos meninos, pois Papai já havia arrumado uma cozinheira. Com a chegada de Tio Júlio, Papai mostrou a ele uma lista de medicamentos  necessária para os atendimentos de urgência. Como também Iguaí não dispunha de farmácia. Alguns medicamentos eram conseguidos em mãos de um rapaz, que de vez em quando, viajava e trazia , para vender aos incautos. Mas ,sabedor da presença de Papai, ele começou a se abster de  praticar a medicina charlatã. Papai  e tio Júlio tiveram a ideia então, de montar uma pequena farmácia.
Todas as noites, sem exceção, eu seguia Papai até o bar do Sr. Manoel Pereira, para saber das notícias transmitidas pelo rádio de bateria, principalmente  futebol  e sobre a guerra que já se alastrava pela Europa.No bar do Sr. Manoel Pereira, existiam duas mesas onde os rapazes jogavam bilhar ou sinuca.O rádio era colocado em cima de uma prateleira de madeira, há quase dois metros e meio de altura, para que a transmissão fosse audível para todos.  Possuía também um balcão de madeira, onde eram servidas bebidas aos fregueses que não quisessem sentar-se  em volta das duas mesas  dispostas no salão.A freguesia era boa, principalmente no horário da “Voz do Brasil” e quando eram transmitidos os jogos de futebol .
E nessa vidinha boa, 1939 foi embora.
Assim que começou o novo ano, à partir de fevereiro, Papai matriculou-me na escola particular do Sr. Miguelzinho. Era um tipo mal encarado, baixinho, corcunda, de pele avermelhada, casado com uma mulher muito bonita , com dois filhos menores, com quatro e dois anos respectivamente.
Não sei  explicar se por causa do seu defeito físico, ou porque os homens não tiravam os olhos de sua mulher, o problema era revertido em cima dos alunos. E quem caísse na desgraça do professor Miguelzinho, estaria sujeito a:
a)ficar de joelhos em cima de caroços de milho, no canto da sala de aula.(Fiquei duas vezes, por brigas com colegas);
b)ficar de joelhos em cima das janelas da sala de aula, com as pernas voltadas para dentro de casa, com uma coroa de papelão na cabeça e ainda ostentando um faixa onde se lia :”SOU BURRO”;
c)ganhar bordoadas nas mãos, aplicadas com uma  PALMATÓRIA  de madeira.
Além desse castigos, os alunos  eram submetidos  a receber  “cascudos”,  “beliscões” e piparotes nos lóbulos das  orelhas.
Tendo em vista tantas atrocidades, os pais se reuniram e retiraram todos os filhos da escola do Sr. Miguelzinho, que não tendo outro meio de vida, mudou-se de Iguaí.

PALMATÓRIA: Peça de madeira, geralmente redonda, dotada de um cabo, usada para bater  na mão de quem merecesse tal castigo.





Para nós, da quarta série, surgiu a figura  benemérita e serena  da Professora  Ester Galvão Gonçalves, cujo nome e imagem, sempre guardei  em minha memória, mesmo tendo passado todos esses anos. Era uma pessoa bondosa, calma, cônscia dos seus deveres profissionais. Além das disciplinas constantes do currículo, ela incluía música, teatro, religião com os aconselhamentos de uma boa mãe.
Éramos quatro, os alunos da quarta série, começando  pelos mais velhos em ordem decrescente:
João Mãozinha(nunca soube o sobrenome dele).Era um rapaz com cerca de dezessete anos, alto moreno que possuía na mão esquerda um defeito, onde os quatro dedos, ressecados se juntavam ao polegar normal. Como ele era destro, usa somente a mão esquerda para ajudar a segurar os objetos, o que fazia com toda a habilidade possível. Professava a religião sabatista e a Professora Ester  tendo  que dispensá-lo das aulas de sábado, o fez também conosco. Somente os alunos das outras séries é que frequentavam a escola.
Arnaldo Désquivel  Souza ,com cerca de dezesseis anos, era neto de um comerciante ,por nome João Batista de Souza, que por sinal, Papai tomou-o para ser meu padrinho de crisma. Os pais de Arnaldo residiam no Rio de Janeiro e assim que o mesmo concluiu a quarta série, viajou e nunca mais o vi.
João Alves Pereira, estava com treze anos. O pai dele era o Sr. Manoel Pereira, dono do bar e certa feita convidou os meus pais para serem padrinhos de uma filha dele, logicamente, irmã de João .Após a conclusão do seu curso, ele e eu, tomamos caminhos diferentes e anos depois fomos nos encontrar em plena Faculdade de Odontologia.
Quanto à Professora Ester Galvão Gonçalves, deveria estar viva ainda, para que eu pudesse dar-lhe um grande abraço de agradecimento. Com os ensinamentos dela, quando fui chamado a Salvador por Tia Edite, para prestar os exames de admissão, não precisei fazer teste algum. Passei direto de primeira, para fazer a primeira série ginasial.
Além dos seus ensinamentos normais, a professora Ester periodicamente, organizava uns debates estudantis, entre todos os alunos  das diversas séries. Assim é que, a nossa turma participou de dois debates durante o ano de 1940.No primeiro, José Mãozinha e eu, juntos, tivemos que escrever e defender a atuação dos religiosos na comunidade ,enquanto Arnaldo e João Pereira, fizeram a defesa dos advogados. Em outra oportunidade, João Pereira e eu fomos defender os médicos e João Mãozinha e Arnaldo defenderam os professores. Era um debate sadio e nenhuma dupla acusava a adversária. Cada qual defendia  o seu ponto de vista e a plateia era formada, justamente pelos pais de alunos que iam assistir e provavelmente saiam satisfeitos.
Quem se lembrava de que em algum dia fomos alunos de um tal Miguelzinho?
Concluímos  o nosso curso primário e a despedida foi emocionante. Chorávamo-nos alunos e a Professora não se continham em prantos. Possivelmente em toda a carreira dela, nunca tivera alunos tão estudiosos. A lembrança de cada lado ,deve ter sido eterna. Professora que Deus  a guarde num bom lugar.

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