quinta-feira, 21 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias (p12)


Iguaí, historicamente, sempre foi um local político. Estudantes, moradores de Iguaí, que faziam o seus cursos em Salvador ou em outros locais, eram olhados pelos rapazes e moças, com o maior carinho possível.
Então, à partir de dezembro de 1948, consegui reunir um grupo bem grande de adolescentes, que variavam entre 15 e 20 anos. Com reuniões frequentes, umas vezes na residência do Sr. Laudenor, um alfaiate muito amigo nosso e em outras ocasiões, na escadaria da igreja, conseguimos um grupo bem COESO, para realizarmos num ambiente fechado, o primeiro Carnaval de Iguaí, que cairia  entre os dias 8, 9 e 10 de fevereiro. Nesse período que antecederia às comemorações carnavalescas, procuramos um local espaçoso, onde comportaria o conjunto musical, as cadeiras, as mesas, um local onde seria montado um pequeno bar, deixando ainda o espaço suficiente para os foliões brincarem.
Os dias foram passando e aí começou a política. Outro grupo de rapazes e moças, não pertencentes ao nosso, achou por bem de nos imitar e se puseram a trabalhar com a finalidade de tentar a nos intimidar. Eram gracejos inconvenientes para com as mocinhas do nosso grupo. Ameaças aos rapazes se tentassem passar perto de onde eles ensaiavam. Enfim, uma guerra de nervos de se tornarem praticamente inimigos gratuitos. Era uma politicazinha mesquinha e absurda.
Finalmente as festas carnavalescas chegaram e os rumores apareciam de vez em quando. Ái, daquele folião que passasse próximo da festa do outro grupo. Era ameaçado de tomar surra. Um dos nossos, só para contrariar as recomendações que fizemos, numa daquelas noites, achou de passar perto da festa deles. Foi apedrejado e ele saiu correndo em disparada.
Como o nosso intuito era o de nos distrairmos, de forma alguma revidamos e nem procuramos confusão.
Felizmente o Carnaval transcorreu na maior euforia, mas senti de perto que desde aquela época, o local já transpirava a política na pele.
Foi a primeira e última vez que me envolvi em festas de grupos naquela Vila, hoje um dos mais prósperos Municípios da Bahia, que também não sei afirmar se ainda continua aquele ranço político de outrora.

COESO: Unido. Ligado por coesão. Que é harmônico. Coerente. Lógico. Onde existe ligação recíproca.


Alguns dias se passaram e dali da farmácia de Papai, notei certo zum zum zum numa daquelas tardes. Um caminhão repleto de criancinhas estacionou na praça principal, enquanto outras tantas estavam em volta, gritando, numa euforia contagiante. Depois de analisar e perguntar de um e de outro, soubemos que algum morador da Vila, num gesto altruístico, alugou aquele caminhão por algumas horas, para que o veículo rodasse pelas ruas principais, dando chance a maior parte da garotada a conhecer um veículo que eles nunca haviam sequer conhecido de perto. Foi uma algazarra tremenda, daquelas nunca vista na localidade.
Chegado o período escolar, regressei a Salvador, para cumprir mais uma etapa de estudos. Por coincidência ou não, namorei com três garotas quase que simultaneamente. Uma delas morava ali perto e chamava-se Vanda e tinha  a mania de chorar sem nenhum motivo. Ao contrário desta, outra, por nome Dagmar, residia em Mont Serrat, zona do Bomfim. Dagmar era uma morena alta, vistosa, de minha altura, muito bem feita de corpo, embora o rosto ficasse muito a desejar. Conheci-a numa festa no Iate Clube da Bahia, por causa de um grupo de estudantes de Medicina, que vendeu ingressos em benefício das festas de final de ano. E uma terceira, por nome Marina, que somente via às tardes num curso de datilografia. Das três, a que eu tinha maior contato era Vanda, pois a via todas as noites, exceto sábado, que era a vez de Dagmar, por morar muito longe e estudante pobre, não dispunha de verba suficiente para tais visitas frequentes.
No Colégio Antônio Vieira, havia no meu tempo, dois regimes de frequência: o externato que era o meu  e a maior parte dos meus colegas, que com o correr do tempo, descobri, que pertenciam à famílias ricas ou de classe média alta e o segundo tipo, de internato, para alunos cujas famílias não residiam em Salvador. Assim ao ingressar naquele Colégio já fui com a intenção de estudar para passar no Vestibular, pois, ele era um dos melhores da Capital e queria repetir o feito deixado por meus avós Manta e Afonso. Com essa finalidade em mente, fui aos poucos me afastando das namoradas. Por sua vez, o Colégio Antônio Vieira, incentivava os seus alunos, com uma premiação de medalhas ao final do ano letivo e dessa forma ao concluir a primeira série do curso científico, ganhei duas medalhas de primeiro lugar, sendo uma em Matemática e a outra em Química.
Na parte de Educação Física, o aluno tinha o livre ARBÍTRIO, em escolher o esporte que desejasse. De primeira, escolhi basquetebol, pois era um esporte que nunca praticara, mas quando notei de perto, que era muito violento, desisti e me dediquei inteiramente ao voleibol, onde me firmei.

ARBÍTRIO: decisão apenas da vontade. Vontade própria e independente. Livre arbítrio loc. Poder de decisão sem coação exterior.
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Durante a minha permanência na primeira série, observei de imediato que os rapazes pertenciam a família riquíssimas e a maior parte, dos hoje chamados de “filhinhos do papai”. Metidos, cheios da grana e já falavam em autos, e que Papai era assim, ou papai era assado. Deles, aos poucos só queria distância. Então, nesse tipo de convivência a que não estava acostumado, fui fazendo minha peneiragem, até chegar a dois filhos de espanhóis chamados de Manoel Quintas Ferrero e Jesus Alonso Baqueiro. O Quintas, era um rapaz de boa índole, estudioso e sentava à minha frente, onde ao nosso lado esquerdo, estava um armário de madeira e vidro e dentro, um esqueleto. Por sua vez, o Jesus, era o oposto. Não queria saber de estudar, levando tudo na brincadeira. O certo é que ao final, do ano, enquanto, eu ganhava as duas medalhas já citadas e Quintas recebia a sua, de primeiro lugar em Desenho, Jesus amargava uma reprovação na maioria das disciplinas.

Naquele ano, um fato teve que ser chamado às sérias consequências. O Professor de Francês, supondo que o filho dele fosse aprovado no Exame de Admissão, ao saber do resultado, reprovou a nossa turma de forma total. De forma que regressei a Iguaí aborrecido com o que acontecera. Em fevereiro, teria que interromper as minhas férias e retornar a Salvador, para prestar a chamada “segunda época”, que era um tipo de exame escrito e oral, para aqueles que dependessem de qualquer disciplina. Para não aborrecer meus pais com aquela noticia, limitei-me a fingir que nada acontecera, tendo o cuidado apenas de soltar  um a mentirinha a Papai, dizendo que as aulas iriam recomeçar mais cedo. Aconteceu, entretanto, o que ninguém esperava. Os padres, da direção do Vieira, chamaram o tal Professor de Francês, procurando saber o porquê de todos os seus alunos serem reprovados.  E no frigir dos ovos, comprovou-se que fora proposital a reprovação em massa. Isso, só soube depois, ao regressar ao Colégio

Ao final do mês de janeiro, num belo dia, ao chegar para o almoço, Papai mostrou-nos o Boletim de aprovação em todas as disciplinas, ou seja Francês também estava incluída na relação.

Retornei a Salvador um pouco antes, para Papai não desconfiar que eu havia mentido e fui curtir um pouco as namoradas, os cinemas e os meu amiguinhos da rua do Alvo, onde  morávamos. A rua era constituída de famílias da classe média. Alí convivi alguns anos em companhia das minhas tias: Edite, dona da casa, esposa de tio Júlio Dantas, o caixeiro viajante que incentivou Papai a ir exercer a profissão de médico no interior. Tia Licinha(Alice), minha madrinha de representar, que fazia questão de sempre frisar aquele detalhe. Era solteira, pois em sua infância, sofreu meningite e de vez em quando, tinha surtos de arrebatamento. Tia Dulce, que ainda alcancei estudando os últimos anos do Magistério, mas alguns anos depois conheceu Franklin e com ele casou-se, mudando-se para Vitória, capital do Espírito Santo, onde constituiu família.
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Além das minhas três tias citadas, ainda conviviam naquela casa: Vovô Manta, médico, capitão da Polícia do Estado da Bahia, onde muitas e muitas vezes foi acompanhar as milícias que estavam atrás do bando de Lampião e Maria Bonita.

Antônio Natalino, Carolina (Carol) e Maria da Conceição (Ceça), eram os três filhos de tia Edite, nascidos em 1938, 41 e 42 respectivamente. Dalva Manta Malaquias, que fazia o Curso de Magistério, no Instituto Normal da Bahia, era minha prima, filha de tia Dedé e o irmão dela Orlando (Branco). Mais tarde um pouco, chegou Diva, mas Orlando foi morar com outros parentes. Vivíamos com o objetivo principal de estudar. Enquanto nós maiores, já havíamos concluído o curso ginasial, tia Edite matriculara Natalino, Carol e Ceça, no Colégio da Professora Anfrisia Santiago iniciando-os no curso primário.
“Nas horas vagas, subíamos ao telhado do quarto de vovô Manta, para empinar “arraias” ou” periquitos”.
Pertencente ao bairro da Saúde, a rua do Alvo era vizinha do Godinho e naquela periferia, fiz algumas amizades com garotas e rapazes do meu tope. Os mais chegados por causa dos babas tradicionais, eram Chico e Alemãozinho. Chico era um adolescente, um pouco mais alto do que eu, mas não gostava de jogar futebol e por isso mesmo, andava sempre vestia terno completo (calça e paletó). Era um piadista de mão cheia e sentia-se muito feliz em nossa companhia. Alemãozinho por sua vez, era um exímio jogador de futebol. Meio gordinho e de pequena estatura, cabelos avermelhados (origem provável do seu apelido),tinha uma agilidade tremenda em suas pernas curtas. Como era tido como um VIRTUOSE da pelada cansava-se de tanto driblar os adversários, que começava a rir e às vezes perdia o domínio da pelota. Nunca pude perceber as condições financeiras de cada um deles. A maioria dos amigos residia na Rua do Alvo. Renato Andrade, o mais velho do grupo, já era estudante de odontologia e quando fundamos a Associação Recreativa Cruzeiro (ARC), escolhemos o Renato para presidente. Na casa dele, morava um rapaz, muito tímido, por nome Salvador, mas devido a reconciliação dos pais deles, foi levado de volta ao convívio dos mesmos e nunca mais o vi.

VIRTUOSE: pessoa que domina em alto grau o conhecimento  e a técnica de uma arte ou atividade.  Sinônimo de virtuoso.

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O Herbert, tocador de violão, sempre era visto com a sua peça musical e na hora em que o grupo se reunia, ele o dedilhava para gaudio de todos. Residia no casarão, que ficava quase em gente à casa de tia Edite. Naquela casa grande, que fora dividida por seu proprietário, em vários setores e compartimentos, abrigava várias famílias de diversos poderes aquisitivos. Havia uma parte que ficava abaixo do nível da rua e de lá vi muitas pessoas entrarem e saírem num vai e vem constante, durante o dia todo. Na parte média da casa, conheci de perto duas famílias;  a do meu colega de faculdade, Otávio Conceição Mendonça e do amigo Jamil Almeida Bagdede, filho de pai árabe com mãe brasileira.  Otávio, de pais negros, era filho único, pois nunca o vi referindo-se a qualquer irmão. Jamil, ao contrário tinha duas irmãs Alaíde e Kadije e um irmão de nome Osman. Herbert gostava de dedilhar o seu violão e certas vezes, ficávamos à porta da casa de tia Edite, a ouvi-lo. Alí também era o ponto de reunião do grupo, para contar as novas piadas, casos acontecidos na vida do bairro ou repassar os filmes aqueles que ainda não tinham visto. Vez por outra, aparecia outro amigo nosso, por nome Mário Gusmão, que não residia alí perto, mas gostava do nosso convívio salutar. O irmão dele por nome Osvaldo, não chegou a frequentar a nossa roda, pois era homem feito e certamente achava-se bem “grande”, para ficar ao nosso lado. Uns amigos de Renato, chamados de Osmar e Grimaldi,  apareciam naquelas bandas, porém nunca participaram de perto do nosso grupo. Éramos viciados em assistir filmes nos cinemas Jandaia, Aliança e Pax, por serem mais  próximos e mais baratos e quem não assistisse, certamente iria saber dos conteúdos através dos amigos do grupo. Jamil que era de todos, o que se dedicava a apreciar até os nomes dos diretores, produtores e o pessoal técnico dos filmes, além de repassar para nós, inventava também outros, principalmente os de mistério, muito em moda naquela época.
Nos meses de abril, maio e junho, todos os anos  lá na Cidade Baixa, eu começava comprando 10 a 20 cruzeiros de fogos de artifício, tipo estrelinhas, cobrinhas, busca-pé, foguetinhos, traques, bombinhas e outros de menor poder de fogo, como tiras de coió, traques de massa e os revendia na porta de casa, aos garotos da redondeza. De inicio, eu preparava uma caixa de madeira de sabão massa (hoje o sabão vem acondicionado em caixas de papelão); fazia prateleiras, a fim de dividir o espaço da caixa e a enfeitava com papel de seda, para torná-la mais atraente. Chamavam-na de “Rifa” e durante aqueles três meses eu ganhava um dinheirinho até razoável. No principio, como o capital ainda era pequeno, me obrigava a ir todo o santo dia à Cidade Baixa, a fim de repor a mercadoria revendida. Mas, aos poucos com o crescimento e com os lucros obtidos, uma vez por semana, era o suficiente. No dia de São João, saía com a turma a às vezes era até procurado por pessoas adultas, e eu os atendia gentilmente, tendo que naturalmente retornar em casa de tia Edite, onde já deixava a mercadoria bem fácil e tia Licinha era a fiscal, para ninguém bulir.
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