sexta-feira, 8 de março de 2013

Autobiografia de Irundy Dias(p 10)

No ano de 1944, passei por uma experiência nova. Assim, é que na volta de Salvador para cá, já haviam inaugurado um terminal marítimo no porto de São Roque. Dessa forma, o navio que fazia aquela rota, não mais iria até Nazaré. Os passageiros desciam em São Roque do Paraguaçu e ali mesmo pegavam o trem, que os conduziriam até Jequié. Portanto, uma viagem que até então, era feita de Salvador a Iguaí, em quatro dias, ficou reduzida a três. À principio, comprava-se um bilhete em Salvador até São Roque e um outro dali até Jequié, mas algum tempo depois, já se podia adquirir o bilhete na Navegação Bahiana,  dando o direito de viajar de navio e em seguida no trem, ou vice-versa. Nessa primeira viagem, uma peça do trem, quebrou-se e ficamos parados em Jequiriçá, por muito tempo e quando chegamos ao final da viagem em Jequié, o dia estava clareando. Com o TIQUETE da bagagem, chamei um “carregador” que levou a minha mala e me conduziu até a ponte que fica sobre o rio de Contas, onde por sorte, peguei  logo um caminhão que me deixou na porta da pensão do Sr. Arlindo Carvalho. No dia seguinte, em companhia do guia que Papai providenciara, para me esperar e conduzir até Iguaí, saímos cedo e mesmo com as dificuldades existentes no caminho, como passagens de rio cheio, onde, para  não molhar os pés e as pernas, nos forçavam as suspendê-las, pois a água do rio, chegava até a barriga dos animais. Afora isso, chegamos ao fim da jornada sãos e salvos, sem nenhum incidente.
Antes do Natal, soubemos que uma cigana, com bola de cristal, cartas de tarô e outros artefatos usados por  elas, estava hospedada na pensão de Dona Raquel. A notícia espalhou-se rapidamente entre nós adolescentes e assim, logo na primeira noite de atendimento, um bom grupo de rapazes e moças, juntou-se à porta da pensão, onde tivemos que fazer fila. Leitura de mão era o preço mais barato e à medida que fossem incluídas outras modalidades, o pagamento era maior. Preferi somente a leitura de mão, pois um  rapazola de apenas 14 anos, não dispunha no bolso, desse dinheiro folgado, para gastar com uma cigana.
Era uma cigana morena, de olhos verdes, aparentando ter mais de 40 anos. Trazia sobre a cabeça, um pano de seda branco. Nas orelhas, duas argolas, tipo moedas, de cor dourada. Sobrancelhas cheias, num rosto extremamente redondo. Fora bem bonita, quando mais jovem, pois ainda trazia vestígios parcos de estar próxima ao CLIMATÉRIO.
Sentei-me em sua frente,  separados apenas, por uma mesa de madeira, quadrada. A seu pedido, coloquei a minha mão direita, com a palma voltada para cima. Ela, com a sua mão esquerda segurou os quatro dedos de minha mão, deixando livre apenas o polegar. Com a outra mão, ela foi analisando o que via e depois de alguns segundos, começou mais ou menos assim:


TIQUETE: cartão, bilhete ou comprovante, que garante acesso a receber um objeto, previamente entregue. Serve também, para facilitar a entrada em alguma diversão pública.

CLIMATÉRIO: Período correspondente à menopausa ou a declínio sexual e que se caracteriza por um conjunto de modificações orgânicas e psíquicas.

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---”Rapaz, você não mora nesse lugarejo. Confirme com a cabeça se estou certa ou errada.”
Balancei a cabeça afirmativamente, porque de fato praticamente eu residia em Salvador. Eram dez meses cuidando dos meus estudos , enquanto em Iguaí os dois meses de férias, entre os meados de dezembro até fevereiro.
Ela continuou:
“---Essa sua namorada, irá viajar e nunca mais vocês se verão.”
Na praça, onde nós morávamos, a casa já era própria, pois naquele período residindo na Vila, Papai começou amealhando algum dinheirinho e paulatinamente foi aplicando na construção da casa, não mais ficando sujeito a pagar aluguel. Do lado direito, morava uma família, onde o filho mais velho de apelido Fuá namorava uma das gêmeas, que estava passando algum tempo em Iguaí e o pai delas havia alugado a casa do lado esquerdo da nossa. A outra gêmea era justamente a minha namorada. Um mês depois, ou seja em princípios de janeiro de 1945,a família viajou e nunca mais  retornou a Iguaí.
Naquela noite, pela segunda vez, a cigana acertara em cheio. E ela, continuou:
“---Em sua vida profissional, daqui a alguns anos, não irá ganhar muito dinheiro. Isso quer dizer: não ficará rico. Terá apenas o suficiente para manter a sua família tranquila. Finalmente estou ainda vendo em sua mão, que a linha da vida o conduzirá até 99.”
Essa última frase me deixou intranquilo por diversos anos. De fato, como dentista, não ganhei muito dinheiro. Trabalhei na Câmara de Vereadores durante 35 anos, no período compreendido entre 1959 e 1994 e todos sabem que qualquer funcionário municipal, não tem lá esses rendimentos (a não ser aqueles que fazem parte das maracutaias dos governos fraudulentos). Lecionei também no Ginásio de Poções, mais tarde CNEC e mais três anos no IECEM, totalizando 43 anos, sendo a maior parte dos rendimentos, pagos pelo Governo do Estado da Bahia. E mais uma vez, confirma-se aquela velha história, que o Professor se sacrifica para ajudar os outros. E a cigana , aí, também não errou.
Sobre a linha da vida citada por ela, há o fato que passei o ano de 1999 todo MACAMBUZIO e quando Noélia e eu comemoramos a passagem daquele, para o ano 2000, disse comigo:
---Esse 99, citado pela cigana, já se foi. E é o que resta para a cigana acertar. Que 99 será esse?
Espero que Deus me dê muita saúde, para que eu possa atingir em breve, os meus jovens 99 aninhos e em especial na companhia de minha querida Nó.”

MACAMBUZIO: Que apresenta tristeza. Que possui  temperamento fechado, taciturno e melancólico

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Em fins de fevereiro de 1945, tio Júlio estando em Poções, mandou um recado a Papai, que estaria me esperando a fim de seguirmos à Salvador.
Como a estrada de rodagem, Poções-Iguaí estava precariamente construída, Papai conseguiu para mim, um lugar na boleia de um caminhão que faria aquele percurso, saindo depois do almoço. Sentei-me ao lado de uma garotinha de uns cinco anos, que por sua vez, estava ao lado da mãe. O marido era justamente o motorista e proprietário do caminhão. Na carroceria viajavam pelo menos, umas quinze pessoas. Quando passávamos por Nova Canaã, já próximos a  subir a serra , eis que o tempo fechou com relâmpagos, raios e trovões com prenúncios de um chuva copiosa. De onde estávamos na boleia, ouvíamos gritos histéricos das mulheres medrosas  que estavam na carroceria. Em dado momento, o caminhão caiu num buraco, pois  a quantidade de água que descia pela estrada, impedia a visibilidade do motorista. Ele e o ajudante desceram e tentaram ver de perto as condições de safar o veículo do atoleiro. Como a chuva aumentava de intensidade cada vez mais, o motorista voltou à cabine e avisou a todos que iria esperar a chuva melhorar. Tal não aconteceu, pelo menos na primeira hora. Depois que a chuva  AMAINOU mais, o motorista e  o ajudante tornaram a verificar as condições do caminhão dentro do buraco e observaram que com a enxurrada forte que descia, era impossível  trabalhar, naquelas condições, mesmo com a ajuda de alguns passageiros. Então os dois saíram do local e instantes depois voltaram, dizendo aos passageiros que encontraram uma casa ali perto, cujo dono se prontificou a dar abrigo a todos. Como na zona da mata, escurece mais rápido e ainda mais com aquele tempo horroroso, aceitamos a passar a noite na tal casa que era coberta de palha. Havia um sala bem grande, que possivelmente fora assim feita para a secagem dos grãos. Lá no fundo, havia uma porta que dava acesso a um quarto e uma cozinha com um fogão de barro. Como havia uma montanha de achas de lenha, empilhadas  num dos cantos da sala, alguém teve a ideia de distribuí-las entre os passageiros para com elas fazer a sua própria cama. Sempre eu usava um chapéu  de feltro que Papai já comprara há bastante tempo,para usá-lo nas viagens de trem, pois a poeira estragava o nosso cabelo e ele me serviu de travesseiro, horas mais tarde.
Vamos fazer agora uma pequena pausa para meditação;


---Alguém que está lendo esta autobiografia,  já teve a oportunidade  de dormir em cima de lascas de lenha, tendo como travesseiro um pequenp chapéu de feltro ?
Com o consentimento do dono da casa, acenderam uma pequena fogueira bem no centro da sala, para que ninguém sentisse frio.
O nosso jantar, constitui-se de  um pedaço de requeijão com mel,  farinha e uma caneca d’água , pois um dos passageiros que trazia aqueles alimentos no caminhão, resolveu vender a cada companheiro de jornada, um pouco daquilo.

AMAINOU: Do verbo amainar. Diminuir a força do vento, do mar, da chuva, etc.
 Tornar sereno.    Acalmar.
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Lá fora, sentíamos  que os trovões não eram muito intensos mas a chuva caia incessante. Durante um bom tempo, muitos passageiros, conversaram sobre diversos assuntos, mas  as horas foram passando e houve a necessidade imperiosa de dormir. Deitar em cima daquelas achas de lenha foi um sacrifício enorme, mas que jeito. Acomodei-me como pude, fazendo o próprio chapéu de travesseiro. Dormi. Para não deixar a fogueira apagar-se definitivamente, alguém teve o cuidado de estar sempre olhando e quando sentia que o fogo estava baixando, saía pelos quatro cantos da sala, solicitando de cada passageiro, uma lasca de lenha de sua linda cama. Com isso, o sono era interrompido  e voltar a dormir com menos um pedaço da “cama” , era por demais, doloroso. Tal fato se repetiu mais uma vez no decorrer da madrugada e estava torcendo para que o dia logo amanhecesse. Quando estava sentindo que aquele sofrimento iria terminar, eis, que próximo a mim, comecei a ouvir uns piados. Pus os meus ouvidos bem à escuta, para saber ao certo, de que lado,  partiam aqueles piados. Lá ao centro, a fogueira, mais uma vez, estava se apagando, entretanto, comecei a perceber os primeiros ALBORES do dia. Como os piados à minha volta estavam aumentando, resolvi  logo enfrentar naquela penumbra, o inimigo piador. Mas ainda não dava para enxergar direito. Fiquei escutando tranquilamente, enquanto comigo mesmo pensava:
---Será alguma cobra, que por causa da chuva rastejou para cá?”.
O fato é que em dado momento, com a mão esquerda, num lance bem rápido, agarrei alguma coisa quente. Trouxe para perto de mim e observei que  eu pegara simplesmente no pescoço de um filhote de perua, que se desgarrou  do ninho e ficou procurando abrigo.
O pessoal começou a levantar-se e alguém veio anunciar que por causa da chuva, ele descobrira um pequena córrego com água límpida, que daria para todos fazerem o seu asseio pessoal, como escovar os dentes e lavar o rosto.
Depois que todos se “arrumaram”, conseguiram desatolar o caminhão e seguimos viagem em jejum até Poções e quando chegamos na Praça Deocleciano Teixeira, havia uma quantidade de pessoas fora do comum, aproximando-se do veículo. Conversas  para lá e para cá, conseguimos averiguar, que correu uma onda de boatos pela cidade, onde houvera um acidente conosco, lá nas “Sete Voltas”.
Peguei  a minha maleta e segui direto até a “República dos Viajantes”. Tio Júlio não estava e a moça que me atendeu disse que o mesmo havia saído. Deixei a maleta no quarto e avisei à moça que eu iria à Pensão do Sr. Arlindo Carvalho, almoçar, pois estava com uma fome incrível.
Paguei o almoço e ao retornar encontrei tio Júlio meio preocupado com os boatos que ouvira.
---“Que foi que houve, Dydy?” Desde ontem estava à sua espera e como você não apareceu, hoje cedo mandei um recado para Ary.
Com poucas palavras contei-lhe o que ocorrera.
ALBORES OU ALVORES: claridade fraca ou efêmera. Primeira luz do amanhecer.
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