segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Relembrando AFFONSO MANTA ( 8 )



Em um dos seus primeiros livros, publicado em 1983, o meu mano, assim se  expressou: Nasci em Salvador, Bahia ,na Rua da Poeira,57,em 23 de agosto de 1939, dia, mês  e ano da assinatura do pacto nazi-soviético, esse movimento de má fé ainda não igualado nos anais da história contemporânea. Nove dias depois explodia a segunda guerra mundial.
Quando eu tinha três para quatro meses de idade, meu pai, Dr. Ary Alves Dias, médico recém-formado, sem condições de trabalho na capital, transferiu-se com os nossos para o interior do Estado, indo morar em Iguaí, então uma vila, um dos distritos do município de Poções, no sudoeste baiano. Lá passei a minha infância.
Fui uma criança como todas as outras que vivem na paz de uma localidade pequenina: tomei banho de rio, joguei bola, brinquei, fiz travessuras. Mas, embora um  a mais entre os moleques de calça curta de Iguaí, eu era extremamente sensível. Não gostava de ver badogues e gaiolas, armas contra a vida e a liberdade dos passarinhos. Meus olhos enchiam-se de lágrimas, se eu via esses objetos daninhos  nas mãos dos meus pequenos amigos. Apesar de muito alegre, forte ,sadio, eu chorava de vez em quando, pelos motivos mais imprevisíveis. Eu chorava até com pena de casquinha de tomate na sopa, se isso é crível.
Sempre fui dotado de compreensão fácil, ingressando nas escola primária aos cinco anos, a pedido meu. Aos seis anos, não sei porque, fiz à minha mãe uma pergunta, que até hoje me intriga: "Mamãe, eu já sou pecador? " Minha mãe, que costurava na velha máquina " Singer ", perto da sala de jantar, respondeu-me nesses termos : " Não, meu filho, só quando você completar 7 anos ". Recordo que senti um imenso alívio, uma grande alegria : tinha um ano a mais de folga pra me divertir à vontade, sem me preocupar com o juízo de Deus a meu respeito.
Nos meus dez pra onze anos, meu pai mudou-se com a família para poções, afim de trabalhar como médico do Posto de Higiene local. Em Poções, completei o curso primário, na escola Alexandre Porfírio, na Praça da Liberdade. Eu usava na escola um blusão de farda cáqui, com duas penas brancas bordadas nas golas, que trouxe de Iguaí. Por essa rasão, e também por ser um xará de certo Presidente da República do Brasil, que governou no princípio do século, meu apelido na escola era " Pena ", um cognome como outro qualquer. 

Aos doze anos, segui para Salvador,para prestar o exame de admissão no Ginásio Severino Vieira,no bairro de Nazaré.Fiquei morando com meus primos e meu avô materno em casa de tia Edite, na rua do Alvo, na Saúde.
No ginásio, fui bom aluno até o segundo ano. Do terceiro em diante,na crise das adolescência,mudei de interesses.Gostava de ir mais  à praia e namorar as garotas da Escola Normal no Barbalho. E comecei a escrever os meus primeiros  versos, dos quais não guardei nenhum. E entrei a ler os primeiros livros versando sobre outros assuntos,que não os estritamente curriculares, Passei o terceiro ano, raspando,com média bem baixa.E perdi o quarto ano,tendo que repeti-lo.Eu navegava de vento em popa no barco da fantasia. Aprendi a beber,fazendo as primeiras farras. Fumar eu já fumava desde os treze anos. Encetei novas amizades.
Concluído o Ginásio, entrei no Colégio Central para seguir o curso clássico. Estudei grego,latim, tudo isso. Mas a vida irregular era o meu forte. E o gosto pela leitura também. Por essa época, lia Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Lorca, tudo quanto era poeta e escritor, tudo em letra de forma que me parasse nas mãos. Frequentava assiduamente a Biblioteca  Pública do Estado, por esse tempo localizada na Praça Municipal . E lia de tudo.Lembro que Dotoievsky marcou-me bastante. Cansei de chorar,desconsoladamente,lendo as páginas pungentes de "Crime e Castigo", "O Príncipe Idiota", "Humilhados e Ofendidos". Ao lado dos já citados, Fiodor Dostoievsky foi o autor que mais me impressionou então.
Levando uma vida desligada das tarefas do colégio, a não ser no que me interessava, não é de surpreender que tivesse perdido ano.Não me lembro se foi um ou se foram dois.Tive que novamente que repetí-los.
Por outro lado,não tinha uma meta definida de vida. Vivia de sonhos, que não sabia como concretizar, nem o queria tanto na verdade. Queria seguir as carreiras mais díspares. Queria ser diplomata, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras, professor de línguas neo-latinas, juiz de direito, sacerdote, monge e outras coisas mais, tudo ao mesmo tempo. Estudava por um período as matérias da cada carreira para depois deixá-las de lado.
Terminado o curso clássico,. fiquei sem saber que vestibular fazer.
Minha família queria  que eu seguisse advocacia, mas  eu não tinha o menor pendor para a letra morta das leis. Por falta de uma decisão madura de minha parte, não fiz vestibular nenhum, fui para o interior, Poções, para junto dos meus pais. Logo comecei a lecionar no ginásio local, que então se inaugurava. Ensinei, Português, História e Francês, a contento de todos e até de mim mesmo.
Dois anos depois, tive um estalo, resolvi fazer o vestibular de Ciências Sociais, na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia. Passei, segui o curso,com o desinteresse de sempre.Pois os Émile Durk-heim e os Talcott Parsons da vida me enchiam a paciência. Não conclui o curso, abandonando-o no terceiro ano, perto de me formar.
Para me desvencilhar da tutela econômica paterna, arranjei dois empregos, ambos mal remunerados:guia do Museu de Arte Sacra e repórter do "Diário de Notícias", um jornalzinho chinfrim.
Na faculdade,conheci uma mulher admirável,colega de Ciências Sociais,pintora, atriz de teatro e também estudante de Biblioteconomia. Depois de um namoro,ora sereno, ora tempestuoso, que durou mais de dois anos, casei-me com ela na Igreja de Nazaré, num dia de Reis em 1968.
Tive então que pensar num emprego melhor para ajudar minha mulher,que já estava empregada como bibliotecária, nas despesas da casa. A convite de certo professor de Física, bom de copo, que conheci num bródio no Mercado de São Miguel,coloquei-me como professor de um curso pré-vestibular,na rua Direita da Piedade. Ganhei algum dinheiro, ao ponto de por economias no banco.
Para encurtar a conversa,num rompante justificável, larguei o cursinho,vítima de tremendo esgotamento mental. Pois eu dava aulas pela manhã, à tarde e à noite e mesdmo em certos domingos. en falar no encargo adicional de preparar e redigir as apostilas.
Desempregado, vivi uns tempos ajudando nas despesas do lar com o que havia guardado no banco.Mais ou menos, uns três meses.
Depois de uma dramática ocorrência,que não vem ao caso, fiz  concurso para Inspetor de Correios e Telégrafos, sendo aprovado.E aí a vida mudou por completo. Tive que ir  para o Rio de Janeiro, estudar no Curso de Formação de Inspetores,no Centro de Treinamento da ECT, na Tijuca. Minha mulher foi também para o Rio,munida de uma bolsa de estudos para uma pós-graduação em Documentação Científica,no  IBBD. Ficamos morando próximo à Praça Saens Peña, num pequeno edifício da rua General Roca, não muito longe do Morro do Salgueiro. Em certos dias, à noite, eu ouvia repercutir o batuque estimulante do samba dos Acadêmicos do Salgueiro, em preparativos para o carnaval.
Estudei durante nove meses no Centro, obtendo boa classificação final. Diplomado como Inspetor, contratado, fui servir na Inspetoria Regional da então DR da Guanabara, na rua da Alfândega, inicialmente como chefe de Seção de Reclamações e depois como inspetor comum, da Seção de  Fiscalização.
Quando tudo estava no melhor dos mundos possíveis, sobreveio nova ocorrência do mesmo tipo da anterior, que modificou o rumo de tudo. Por razões que ela deve ter considerado justas, minha mulher pediu o desquite, que eu aceitei. Desde então, agosto de 1975, passei a residir me Poções em caráter permanente, na qualidade de Inspetor da ECT  aposentado,em companhia de meus pais e, por última de minha mãe.
Eis algo do que eu tinha a dizer a quem não me conhece, como prefácio dos meus poemas                                                                                                  AFFONSO MANTA                        

 Em um dos livros publicados pelo meu irmão AFFONSO MANTA, a poetisa e grande amiga dele, a senhora Silvia Tupinambá, prefaciou-o com o título:
                           
                                   AFFONSO MANTA, ENTRE O NAVIO E O CAIS
Como um dia, outrora o conheci. Onde ? não me lembro mais. Camisa verde -oliva, calça rasgada na bunda,de costas , voltado para o azul dos céus e mar, andando ao léo. Foi o que mais nos uniu, esta postura vagabunda. Eu sempre me senti pronta para partir, sem mala nas mãos, sempre me senti, também pária, vagabunda, errante. Não foi à toa que um dia o convidei para partirmos além mar. Sempre divididos entre o claustro e o século. Com a indefectível camisa oliva, apoiados em mesa de bar, fundo azul marinho do Porto, cabelos pretos, curtos e ondulados, dentes grandes amarelos e manchados de fumo,,cigarro na mão, pele muito alva, olhar azeitona, combinando com o verde oliva da camisa.  Campesino espanhol com obsessão da Dinastia Affonsina. Apertava os olhos, quando olhava longe,  não sei se por uma deficiência visual ou se já vislumbrava visões. Um dia no passeio do convento das Mercês, me contou seu delírio - visão apocalípitica - com muitos gestos e entusiamo. Agora pergunto-me: em se tratando do Apocalipse não foi também ameaçador?...
Camisa oliva, passos largos, japona, poesia, recado. Falava pausado e declamado e com conhecimento da Língua. Andava abraçado à mulher e quando comigo descobria um bom achado poético, que definia o estado das coisas, dava grandes risadas, dizendo maroto, "isto dará cólicas nos fariseus". E se sentia vingado. Era místico e lírico.
Um dia, sentado no chão da praça,olhou para o céu e com grande convicção disse ser um rei de outro planeta exilado. Fiquei comovida e pensativa- estranheza deste mundo e agora me pergunto não era por isto de certo que se sentia vagabundo?...
Não se acreditava, naquele tempo, poeta, sua vida dizia isso, mas não a obra breve cono um recado.E tecendo considerações de ordem filosófica comigo a respeito do que seria disse com enfado: "eu não sei o que sou, mas devo ser por certo uma possibilidade da natureza".
Memória, camisa verde-oliva, ar sério, andar vagabundo, cigarro  na mão, dedos e dentes manchados de amarelo-fumo, copo amarelo-cerveja. Campesino espanhol, com gosto de vinho e fumo, cabelo molhado de suor do verão da Bahia.
Camisa oliva desbotada ao vento, ao léu. Um dia perguntou-me por que se amava o outro, eu; por ser o semelhante. Resposta simples, desconcertante. Considerou ser a resposta que tanto buscava. Deu-se por apaziguado. Andanças, imagino contemplação extática de igrejas barrocas Gabinete Português de Leitura, Biblioteca Pública. Onde aprendeu  o Francês? Talvez na sonoridade macia dos versos de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine.
Affonso Manta, campesino espanhol, poeta com  gosto de terra  plantada de vinhas, com o suor do trabalho, parceria comigo: junho, verso, " las botellas hablan de colores". Paixão espanhola de toureiro tinto de sangue  como uma rosa vermelha colhida na sua quinta.
Affonso, velho amigo, sexta-feira santa, santo amarrado, crucificado, por que não parava de andar, declamar, andar, partir, frenesi de partir, para fora daqui, para sua terra natal. Affonso ,"rei destronado" do planeta de onde viera. Affonso, rei vagabundo, destronado por algum tirano malvado que o exilara  de Roxana.                                      SILVIA TUPINAMBÁ


                                                   SONETO    DE    NATAL


Que o teu olhar, Jesus  de caridade                                                  
Apague a multidão dos meus delitos                                            
Que nos serenos campos infinitos
Eu possa descansar da eternidade

Que eu possa ter, em meio à realidade,
A grande paz dos corações contritos.
Que a mentira dos homens e seus mitos
Afastar não me façam da verdade.

Que eu possa ser o mesmo, mas perfeito.
Que eu não abrigue, dentro do meu peito,
Ódios, rancores, malquerença vã.

Que o desespero nunca me desgrace.
E eu veja sempre, em cada sol que nasce,
Uma nova esperança no amanhã.                              

                                                                                   AFFONSO MANTA
                                                                                   NOVEMBRO DE 1990              

No seu livro  NO MEIO DA ESTRADA, um amigo dele, poeta e escritor , Hélio Pólvora, apresentou um CADASTRO, relatando em poucas palavras sobre a biografia de Affonso e ao final citou:
"em 1980, publicou A CIDADE MÍSTICA E OUTROS POEMAS,edição particular, com o apoio do BANEB. Seguiu-se O RETRATO de um poeta, em 1983, pela Editora  Ricardo Benedictis.
O poeta AFFONSO MANTA descende em linha direta do Brigadeiro Domingos Rodrigues Seixas, Voluntário da Pátria, herói da Guerra do Paraguai e Cavaleiro da Ordem da Rosa. Por parte de pai, é primo  em quarto grau de Castro Alves., devido à sua descendência por linha direta,  de João José Alves, o alferes, irmão do médico, Antonio José Alves, pai do Poeta dos Escravos".
O primeiro soneto que faz parte desse livro, NO MEIO DA ESTRADA, AFFONSO MANTA, intitulou de:
                            ESPELHO QUEBRADO

                  Meu coração partiu-se em pedacinhos
                  Como  um  espelho  que  se  espatifou,
                  Mande  uns  adeuses,  uns  adeusinhos
                  Ao  meu  coraçãozinho  que   quebrou.

                  Mande  de  lá  de  longe uns aceninhos,
                  Só  eu  sei  como  sou  e  como   estou,
                  Meu coração partiu-se em  pedacinhos,
                  Mas   a   alegria     de     viver      ficou.

                  Ficou      esta      alegria       clandestina
                  De   ver   o  sol  nascer  de  uma  colina,
                  De   ouvir   cair  a   chuva   no    telhado.

                  Ficou,     enfim,    o    dom    da   poesia,
                  Este    dom    de   criar  no   dia   a   dia,
                  Mesmo   com   o  coração despedaçado.     

3 comentários:

  1. Esse primeiro soneto, foi redigido em 19/ 11/ 2012, AS 10 E trinta.

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  2. Estou gostando da redação de sua autobiografia. Acredito que antes de publicá-la, você irá fazer uma revisão sobre a parte de digitação.
    Certo, companheiro ?

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  3. eu fui aluna de Affonso Manta no pre vestibular da rua Esquerda da Piedade. Ele era extraodinario professor, apaixonado, uma maravilhosa memoria. As vzs de maneira bastante excentrica, interrompia a aula, ia p chuva e voltava todo molhado, e continuava a aula como se nada tivesse acontecido. Eu o achava fascinante, tvz como preludio da psicanalista que eu me tornaria um dia. As fotos que vi dele, no entanto nao correspondem a imagem que ficou na minha cabeca. Gostaria de ver outras fotos e saber como ele est'a. Soube que esteve muito doente.

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