segunda-feira, 8 de abril de 2013

Autobiografia de Irundy Dias( p 17 )

Nos dias que antecederam a minha viagem a Poções, subimos ao telhado do quarto de vovô Manta, para empinar arraia, pois há muito tempo não o fazíamos. Natalino era um expert naquele esporte e ficávamos um tempão desfrutando daqueles bons momentos de lazer. Às vezes quando não tínhamos uma arraia boa, jogávamos um barandão numa outra que estivesse passando por perto e assim ninguém descobria a nossa falcatrua. Ligeiramente vamos a uma explicação à respeito dos dois termos aplicados nesta narrativa. { Empinar é um verbo utilizado entre os aficionados no esporte da arraia, que significa você segurar numa linha que está presa numa (pipa ou periquito, estes são  sinônimos da arraia){ O outro termo é barandão que é um pedaço de linha com mais ou menos uns trinta centímetros segura por duas pedras, presas em suas extremidades. Pois bem,  ao chegarmos ao quarto de vovô Manta, subíamos para uma das janelas(eram quatro, sendo uma voltada para o telhado da casa vizinha e as outras três que se situavam para o telhado da sala de jantar). Ao galgarmos a janela, tínhamos o cuidado de pisar somente na parte cimentada, que eram apenas uns cinquenta centímetros de largura. Dali então, íamos empinar as nossas arraias, ou às vezes, uma só e de olho nas que passassem por perto, para funcionar o velho barandão. Era também um ponto estratégico para Orlando, meu primo, conversar com as meninas do 42, que ao saber da presença do mesmo, iam lá para cima a fim de manter aquele papo a distância. Nunca me interessei  nem por Dulce( a mais velha), nem por Ana a mais nova, porque o namoro entre Orlando e  elas não avançava nada . Era apenas aquela conversinha mole, de cima de telhado, sem futuro e que não ia a lugar algum. Eu também achava a Dulce muito metida e a Ana bem magrela. Orlando por sua vez, se deliciava naquele papo, às vezes bem prolongado.
Antes do  Natal, tomei a resolução de regressar a Poções, pois aqui com calma, iria colocando os assuntos de Física, em ordem. Indo até a Faculdade, soube que os horários das provas, estavam programados para os dias 13, 15 e 17, as escritas e 20,22 e 24 as orais, com previsão de resultados em princípios de março.   
Após os festejos natalinos e de Ano Novo, Papai incumbiu-me de ir até Iguaí, dar o balanço anual das mercadorias e o financeiro da farmácia, que continuava funcionando sob a responsabilidade do jovem Netanias Alves Veiga, que por muitos anos foi o seu braço direito. Em apenas dois dias realizamos o serviço, pois o estoque já estava bem diminuído em relação ao que ele deixara em fevereiro do ano anterior.
Voltando a Poções, armei o seguinte esquema de estudos: todas as manhãs revisava, um dia química e no outro, biologia. As tardes, já com todo o material de Física  posto em ordem, estudava com todo o afinco possível. Era interrompido entre três e meia e quatro horas, para a clássica merendinha que Dona Ó trazia religiosamente, dizendo:  “---Dydy trouxe uma comidinha para você, para não ficar fraco. Você está estudando muito e precisa...” As noites, bem livres, não estudava hora nenhuma. Ia passear um pouco e ao saber de algum filme bom,  me dirigia ao Cine Santo Antônio, Mas nesse vai e vem, conheci uma garota por nome Honorina, que residia à Rua Feliz Gaspar, aquela mesma rua, que em julho passado, assistira de perto a cerimônia de casamento do Sr. Octaviano com a senhorita Amélia.

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Como o Carnaval iria cair nos dias 4, 5 e 6 de fevereiro, a direção da faculdade de medicina, achou por bem reunir os cursos de medicina, farmácia e odontologia nas mesmas datas,  facilitando assim a correção das provas escritas que possivelmente seriam entregues aos mesmos professores. Considerando então a proximidade das provas do vestibular, achei por bem retornar a Salvador a partir de 20 de janeiro. Devido às merendas que Mamãe me oferecia todas as tardes, eu que saíra de Salvador com 58 quilos retornei com 74, engordando cerca de 16 quilos, em um mês, praticamente. Só comendo, sem fazer nenhum exercício, só poderia acontecer aquilo.
Em Salvador, fui aos poucos, encontrando-me com os colegas do Vieira e numa seleção de seis deles, resolvemos alugar um automóvel da marca “studebaker”, sem capota., para passearmos no domingo de carnaval à tarde, no trecho  que ia da Praça da Sé até ao Campo Grande e vice-versa, passando pela Rua da Misericórdia, Praça Municipal, Rua Chile, Praça Castro Alves, e Rua Carlos Gomes, tantas vezes quantas fossem necessárias, até que chegasse a hora dos desfile dos Clubes Carnavalescos de então, que eram chamados, se não me falha a memória, de Cruz Vermelha, Inocentes em Progresso e Fantoches da Euterpe. Foi uma tarde esplendorosa, pois além de revermos os colegas, cujo convívio durou cerca de três anos, fizemos uma higiene mental tão eficiente, que provavelmente aquele passeio nos levou a encarar o vestibular de uma maneira não tanto agressiva. Como estava previsto, as provas escritas foram realizadas nas manhãs dos dias 13 Física, 15 Química e 17(meu aniversário), Biologia e as orais, nas manhãs de 20, 22 e 24 seguindo-se a mesma ordem das escritas. Sobre as provas orais, algo interessante devo relatar: na ordem alfabética, estavam Ipê Cana Brasil, Irundy Manta Alves Dias e Isabel Antunes da Silva. Prova de Biologia, 9 horas da manhã. Candidato chamado: Ipê Cana Brasil. Como eu iria ser o próximo, me postei logo numa cadeira, bem atrás do Ipê e praticamente assisti a todo o seu exame. O Professor foi logo dizendo para Ipê:
“---Rapaz, com você não iremos sortear nenhum ponto, pois o seu próprio nome nos dá minúcias do assunto ao qual  estamos nos propondo.”
Senti por uns momentos Ipê se mexer na cadeira, mas acredito que ele já macaco velho na faculdade(havia feito no ano anterior, o primeiro ano de farmácia e estava tentando passar em odontologia)e o Professor começou:
“--- Rapaz, o seu primeiro nome é Ipê. E em Biologia o que você poderá dizer-me sobre esse tipo de madeira?”
Ipê não perdeu tempo. Discorreu sobre a madeira ipê, mais ou menos uns três a quatro minutos, sendo interrompido algumas vezes pelo professor. Depois, o mesmo continuou:
“— Agora você irá me falar sobre o seu sobrenome Cana.”    Ipê continuou ;”---cana, professor é um tipo de colmo...” E aí seguiu com toda a ênfase possível sobre o assunto. Finalmente o Professor, perguntou :  “--- e Brasil, seu último sobrenome, o que você tem a dizer?” Ipê,não perdeu o embalo e simplesmente respondeu: “--- Professor, a prova não é de Biologia ?Brasil é geografia.

                                                 
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Imaginem a espirituosidade do rapaz. Numa hora daquelas, onde a tensão de todos estava no auge, ele sair com aquela resposta...
Visitando a Secretaria da Faculdade, fomos informados que todos os resultados sairiam provavelmente nos primeiros dias de março e as aulas seriam iniciadas nos primeiros dias de abril, quase um mês depois.
Então, como estávamos ansiosamente esperando, o resultado saiu à tardinha do dia 2 de março. Otávio Conceição Mendonça, vizinho da casa em frente à de tia Edite e que também fizera o vestibular para odontologia, foi quem passou lá em casa e avisou para que eu fosse até a Faculdade ver. Desci a Rua do Alvo igual a um foguete. Subi o Pelourinho no mesmo embalo e entrei pela porta lateral, passando perto das salas do Nina Rodrigues. Atravessei os grandes corredores da Faculdade, até chegar a uma pequena área,  onde sempre colocavam avisos de qualquer natureza. Havia um grande aglomerado de rapazes e moças, procurando cada qual saber do seu resultado. As listas, felizmente, estavam dispostas em ordem alfabética e os aprovados, em caracteres azuis. À medida, que aqueles que estavam em minha frente, iam desocupando os lugares, uns pulando de alegria, enquanto outros saíam cabisbaixos e sem sorrisos, fui aproximando-me do quadro. A quantidade de linhas vermelhas era o triplo o ou quádruplo das linhas azuis, mas confiança em mim mesmo era enorme, apesar de que as provas de Física não foram fáceis. Quando cheguei à posição de ler claramente os nomes das pessoas, encontrei na letra I, três nomes: Ipê, Irundy e Isavil, todos com os caracteres azuis. Aí fixei os meus olhos em minhas médias finais: Física 5 , Química 6,5 e Biologia 9,2 e mais adiante, a média final 6,9, ficando colocado em décimo lugar entre os setenta e quatro aprovados. Com o resultado do quadro, saí pulando de alegria e do mesmo jeito que cheguei na Faculdade, esbaforido, voltei para casa onde todos aguardavam apreensivos. Quando abriram a porta, fui logo gritando:
‘---Passei!  Passei!
Natalino com 13,  Carol com 10 e Ceça com 9 anos, os três, filhos de tia Edite, ainda não entendiam a razão daquela minha EUFORIA.   
Meu vizinho da casa em frente, o Otávio, também fora aprovado. No dia seguinte, fui até a Faculdade, levando todos os meus papéis, para efetuar a minha matrícula. Ao sair da Secretaria, alguns veteranos me abordaram com bons modos e me conduziram até a entrada da Faculdade e naquelas escadas mesmo, cortaram o meu cabelo no chamado trote inicial. Ainda me avisaram que aquilo alí, era somente a recepção. O trote mesmo seria organizado, quando as aulas fossem reiniciadas. Dali  rumei até o meu cabelereiro no largo da Saúde, que usando a máquina zero, deixou a minha cabeça completamente pelada.

EUFORIA : Sensação intensa de bem estar e alegria. Demonstração de contentamento e entusiasmo.

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No próprio dia em que efetuei a minha matrícula, encontrei-me com uma namorada Magali, sobrinha de tia Leonor, esposa de tio Rubinho que muito havia me incentivado antes do vestibular. Deu-me parabéns e desejou-me muito sucesso na profissão escolhida. Naquele mesmo dia viajei a Poções, chegando com a cabeça pelada e usando uma boina vermelha, que era usada pelos calouros da faculdade de odontologia. As boinas verde e amarela eram usadas pelos calouros dos cursos de medicina e farmácia respectivamente.
Papai e Mamãe ficaram radiantes quando me viram. Aos meus poucos amigos de Poções, contei a minha façanha. Minha namorada Honorina, não entendeu muito do que estava contando, mas devido á minha esfuziante alegria ela se deu conta, que era algo diferente do que estava habituada a saber no seu dia  a dia. Mas naquele mesmo mês de março de 1951, a família dela viajou para São Paulo e foi a última vez que a ví. Algum tempo depois, soube pela empregada lá de casa, que num certo dia ,quando eu ainda estava em Salvador, ela foi lá em casa e sem Mamãe saber, foi ao meu quarto e deitou-se em minha cama. Agradeceu e foi embora.
A cidade de Poções não apresentara nenhuma mudança radical. A feira livre aos sábados ainda continuava na Praça Deocleciano Teixeira. Por sua vez, Papai ainda com aquele espírito de comerciante, que norteou a sua vida inteira, abriu uma farmácia na esquina do chamado” beco dos Artistas”.
Voltei a Salvador na primeira semana de abril e para azar nosso, houve um incêndio proposital nos gabinetes dentários na sala de clínica, afetando diretamente os colegas do segundo e terceiro anos. Após uma semana de reuniões e o pessoal notando que o Reitor não estava tomando nenhuma providência, todos os diretórios das diversas faculdades, numa assembleia geral, decidiram decretar uma greve geral por trinta dias, quando fizeram uma passeata do Largo do Terreiro, até o Campo Grande. Aproveitando o embalo, foi  realizado o trote geral dos calouros. No largo do Terreiro, antes da passeata, cada calouro ficou encarregado de executar uma missão imposta pelos veteranos. A minha tarefa foi até suave. Colocaram em minha cabeça um chapéu  feito com jornal, me deram um apito e me colocaram num cruzamento da saída do Pelourinho, com o Largo do Terreiro, a fim de que eu comandasse o trânsito naquela artéria. Gostei da missão, mas em certo momento fiquei hesitando, porque vinha um jipão do exército pelo Largo do Terreiro, mas antes dele,  já se apresentara um automóvel, vindo pela transversal. Não tive escolha. Apitei forte e  barrei o jipão. Ao lado do soldado que estava no volante do jipão, vinha uma alta patente do exército, que certamente compreendendo o que estava acontecendo, acenou para que eu me aproximasse do veículo. Quando cheguei bem próximo, ele sorriu para mim e disse:
“---meus parabéns rapaz, por ter sido aprovado no vestibular. Este velho coronel, tem permissão para passar agora ?”
Balancei a cabeça agradecendo pela gentileza de como fui tratado e vendo o caminho livre, apitei bem forte, dando passagem ao jipão, antes que outro veículo surgisse pela transversal do  Pelourinho.  
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