Nos dias que antecederam a minha
viagem a Poções, subimos ao telhado do quarto de vovô Manta, para empinar
arraia, pois há muito tempo não o fazíamos. Natalino era um expert naquele
esporte e ficávamos um tempão desfrutando daqueles bons momentos de lazer. Às
vezes quando não tínhamos uma arraia boa, jogávamos um barandão numa outra que
estivesse passando por perto e assim ninguém descobria a nossa falcatrua.
Ligeiramente vamos a uma explicação à respeito dos dois termos aplicados nesta
narrativa. { Empinar é um verbo utilizado entre os aficionados no esporte da
arraia, que significa você segurar numa linha que está presa numa (pipa ou
periquito, estes são sinônimos da
arraia){ O outro termo é barandão que é um pedaço de linha com mais ou menos
uns trinta centímetros segura por duas pedras, presas em suas extremidades. Pois
bem, ao chegarmos ao quarto de vovô
Manta, subíamos para uma das janelas(eram quatro, sendo uma voltada para o
telhado da casa vizinha e as outras três que se situavam para o telhado da sala
de jantar). Ao galgarmos a janela, tínhamos o cuidado de pisar somente na parte
cimentada, que eram apenas uns cinquenta centímetros de largura. Dali então,
íamos empinar as nossas arraias, ou às vezes, uma só e de olho nas que
passassem por perto, para funcionar o velho barandão. Era também um ponto
estratégico para Orlando, meu primo, conversar com as meninas do 42, que ao saber
da presença do mesmo, iam lá para cima a fim de manter aquele papo a distância.
Nunca me interessei nem por Dulce( a
mais velha), nem por Ana a mais nova, porque o namoro entre Orlando e elas não avançava nada . Era apenas aquela
conversinha mole, de cima de telhado, sem futuro e que não ia a lugar algum. Eu
também achava a Dulce muito metida e a Ana bem magrela. Orlando por sua vez, se
deliciava naquele papo, às vezes bem prolongado.
x.x.x
Antes do Natal, tomei a resolução de regressar a Poções,
pois aqui com calma, iria colocando os assuntos de Física, em ordem. Indo até a
Faculdade, soube que os horários das provas, estavam programados para os dias
13, 15 e 17, as escritas e 20,22 e 24 as orais, com previsão de resultados em
princípios de março.
Após os festejos natalinos e de Ano
Novo, Papai incumbiu-me de ir até Iguaí, dar o balanço anual das mercadorias e
o financeiro da farmácia, que continuava funcionando sob a responsabilidade do
jovem Netanias Alves Veiga, que por muitos anos foi o seu braço direito. Em
apenas dois dias realizamos o serviço, pois o estoque já estava bem diminuído em
relação ao que ele deixara em fevereiro do ano anterior.
Voltando a Poções, armei o
seguinte esquema de estudos: todas as manhãs revisava, um dia química e no
outro, biologia. As tardes, já com todo o material de Física posto em ordem, estudava com todo o afinco
possível. Era interrompido entre três e meia e quatro horas, para a clássica
merendinha que Dona Ó trazia religiosamente, dizendo: “---Dydy trouxe uma comidinha para você, para
não ficar fraco. Você está estudando muito e precisa...” As noites, bem livres,
não estudava hora nenhuma. Ia passear um pouco e ao saber de algum filme
bom, me dirigia ao Cine Santo Antônio,
Mas nesse vai e vem, conheci uma garota por nome Honorina, que residia à Rua
Feliz Gaspar, aquela mesma rua, que em julho passado, assistira de perto a
cerimônia de casamento do Sr. Octaviano com a senhorita Amélia.
x.x.x
Como o Carnaval iria cair nos
dias 4, 5 e 6 de fevereiro, a direção da faculdade de medicina, achou por bem reunir
os cursos de medicina, farmácia e odontologia nas mesmas datas, facilitando assim a correção das provas
escritas que possivelmente seriam entregues aos mesmos professores. Considerando
então a proximidade das provas do vestibular, achei por bem retornar a Salvador
a partir de 20 de janeiro. Devido às merendas que Mamãe me oferecia todas as tardes,
eu que saíra de Salvador com 58 quilos retornei com 74, engordando cerca de 16
quilos, em um mês, praticamente. Só comendo, sem fazer nenhum exercício, só
poderia acontecer aquilo.
Em Salvador, fui aos poucos,
encontrando-me com os colegas do Vieira e numa seleção de seis deles, resolvemos
alugar um automóvel da marca “studebaker”, sem capota., para passearmos no
domingo de carnaval à tarde, no trecho
que ia da Praça da Sé até ao Campo Grande e vice-versa, passando pela
Rua da Misericórdia, Praça Municipal, Rua Chile, Praça Castro Alves, e Rua Carlos
Gomes, tantas vezes quantas fossem necessárias, até que chegasse a hora dos
desfile dos Clubes Carnavalescos de então, que eram chamados, se não me falha a
memória, de Cruz Vermelha, Inocentes em Progresso e Fantoches da Euterpe. Foi
uma tarde esplendorosa, pois além de revermos os colegas, cujo convívio durou
cerca de três anos, fizemos uma higiene mental tão eficiente, que provavelmente
aquele passeio nos levou a encarar o vestibular de uma maneira não tanto
agressiva. Como estava previsto, as provas escritas foram realizadas nas manhãs
dos dias 13 Física, 15 Química e 17(meu aniversário), Biologia e as orais, nas
manhãs de 20, 22 e 24 seguindo-se a mesma ordem das escritas. Sobre as provas orais,
algo interessante devo relatar: na ordem alfabética, estavam Ipê Cana Brasil,
Irundy Manta Alves Dias e Isabel Antunes da Silva. Prova de Biologia, 9 horas
da manhã. Candidato chamado: Ipê Cana Brasil. Como eu iria ser o próximo, me
postei logo numa cadeira, bem atrás do Ipê e praticamente assisti a todo o seu
exame. O Professor foi logo dizendo para Ipê:
“---Rapaz, com você não iremos
sortear nenhum ponto, pois o seu próprio nome nos dá minúcias do assunto ao
qual estamos nos propondo.”
Senti por uns momentos Ipê se
mexer na cadeira, mas acredito que ele já macaco velho na faculdade(havia feito
no ano anterior, o primeiro ano de farmácia e estava tentando passar em
odontologia)e o Professor começou:
“--- Rapaz, o seu primeiro nome é
Ipê. E em Biologia o que você poderá dizer-me sobre esse tipo de madeira?”
Ipê não perdeu tempo. Discorreu
sobre a madeira ipê, mais ou menos uns três a quatro minutos, sendo
interrompido algumas vezes pelo professor. Depois, o mesmo continuou:
“— Agora você irá me falar sobre
o seu sobrenome Cana.” Ipê continuou ;”---cana,
professor é um tipo de colmo...” E aí seguiu com toda a ênfase possível sobre o
assunto. Finalmente o Professor, perguntou :
“--- e Brasil, seu último sobrenome, o que você tem a dizer?” Ipê,não
perdeu o embalo e simplesmente respondeu: “--- Professor, a prova não é de
Biologia ?Brasil é geografia.
x.x.x
Imaginem a espirituosidade do
rapaz. Numa hora daquelas, onde a tensão de todos estava no auge, ele sair com
aquela resposta...
Visitando a Secretaria da
Faculdade, fomos informados que todos os resultados sairiam provavelmente nos
primeiros dias de março e as aulas seriam iniciadas nos primeiros dias de
abril, quase um mês depois.
Então, como estávamos
ansiosamente esperando, o resultado saiu à tardinha do dia 2 de março. Otávio
Conceição Mendonça, vizinho da casa em frente à de tia Edite e que também
fizera o vestibular para odontologia, foi quem passou lá em casa e avisou para
que eu fosse até a Faculdade ver. Desci a Rua do Alvo igual a um foguete. Subi
o Pelourinho no mesmo embalo e entrei pela porta lateral, passando perto das
salas do Nina Rodrigues. Atravessei os grandes corredores da Faculdade, até
chegar a uma pequena área, onde sempre
colocavam avisos de qualquer natureza. Havia um grande aglomerado de rapazes e
moças, procurando cada qual saber do seu resultado. As listas, felizmente, estavam
dispostas em ordem alfabética e os aprovados, em caracteres azuis. À medida, que
aqueles que estavam em minha frente, iam desocupando os lugares, uns pulando de
alegria, enquanto outros saíam cabisbaixos e sem sorrisos, fui aproximando-me
do quadro. A quantidade de linhas vermelhas era o triplo o ou quádruplo das
linhas azuis, mas confiança em mim mesmo era enorme, apesar de que as provas de
Física não foram fáceis. Quando cheguei à posição de ler claramente os nomes
das pessoas, encontrei na letra I, três nomes: Ipê, Irundy e Isavil, todos com
os caracteres azuis. Aí fixei os meus olhos em minhas médias finais: Física 5 ,
Química 6,5 e Biologia 9,2 e mais adiante, a média final 6,9, ficando colocado
em décimo lugar entre os setenta e quatro aprovados. Com o resultado do quadro,
saí pulando de alegria e do mesmo jeito que cheguei na Faculdade, esbaforido,
voltei para casa onde todos aguardavam apreensivos. Quando abriram a porta, fui
logo gritando:
‘---Passei! Passei!
Natalino com 13, Carol com 10 e Ceça com 9 anos, os três,
filhos de tia Edite, ainda não entendiam a razão daquela minha EUFORIA.
Meu vizinho da casa em frente, o
Otávio, também fora aprovado. No dia seguinte, fui até a Faculdade, levando
todos os meus papéis, para efetuar a minha matrícula. Ao sair da Secretaria,
alguns veteranos me abordaram com bons modos e me conduziram até a entrada da
Faculdade e naquelas escadas mesmo, cortaram o meu cabelo no chamado trote inicial.
Ainda me avisaram que aquilo alí, era somente a recepção. O trote mesmo seria
organizado, quando as aulas fossem reiniciadas. Dali rumei até o meu cabelereiro no largo da Saúde,
que usando a máquina zero, deixou a minha cabeça completamente pelada.
EUFORIA
: Sensação intensa de bem estar e alegria. Demonstração de contentamento e
entusiasmo.
x.x.x
No próprio dia em que efetuei a
minha matrícula, encontrei-me com uma namorada Magali, sobrinha de tia Leonor,
esposa de tio Rubinho que muito havia me incentivado antes do vestibular. Deu-me
parabéns e desejou-me muito sucesso na profissão escolhida. Naquele mesmo dia
viajei a Poções, chegando com a cabeça pelada e usando uma boina vermelha, que
era usada pelos calouros da faculdade de odontologia. As boinas verde e amarela
eram usadas pelos calouros dos cursos de medicina e farmácia respectivamente.
Papai e Mamãe ficaram radiantes
quando me viram. Aos meus poucos amigos de Poções, contei a minha façanha. Minha
namorada Honorina, não entendeu muito do que estava contando, mas devido á
minha esfuziante alegria ela se deu conta, que era algo diferente do que estava
habituada a saber no seu dia a dia. Mas
naquele mesmo mês de março de 1951, a família dela viajou para São Paulo e foi
a última vez que a ví. Algum tempo depois, soube pela empregada lá de casa, que
num certo dia ,quando eu ainda estava em Salvador, ela foi lá em casa e sem
Mamãe saber, foi ao meu quarto e deitou-se em minha cama. Agradeceu e foi
embora.
A cidade de Poções não
apresentara nenhuma mudança radical. A feira livre aos sábados ainda continuava
na Praça Deocleciano Teixeira. Por sua vez, Papai ainda com aquele espírito de
comerciante, que norteou a sua vida inteira, abriu uma farmácia na esquina do
chamado” beco dos Artistas”.
Voltei a Salvador na primeira
semana de abril e para azar nosso, houve um incêndio proposital nos gabinetes
dentários na sala de clínica, afetando diretamente os colegas do segundo e
terceiro anos. Após uma semana de reuniões e o pessoal notando que o Reitor não
estava tomando nenhuma providência, todos os diretórios das diversas faculdades,
numa assembleia geral, decidiram decretar uma greve geral por trinta dias,
quando fizeram uma passeata do Largo do Terreiro, até o Campo Grande. Aproveitando
o embalo, foi realizado o trote geral
dos calouros. No largo do Terreiro, antes da passeata, cada calouro ficou
encarregado de executar uma missão imposta pelos veteranos. A minha tarefa foi
até suave. Colocaram em minha cabeça um chapéu feito com jornal, me deram um apito e me
colocaram num cruzamento da saída do Pelourinho, com o Largo do Terreiro, a fim
de que eu comandasse o trânsito naquela artéria. Gostei da missão, mas em certo
momento fiquei hesitando, porque vinha um jipão do exército pelo Largo do
Terreiro, mas antes dele, já se apresentara
um automóvel, vindo pela transversal. Não tive escolha. Apitei forte e barrei o jipão. Ao lado do soldado que estava
no volante do jipão, vinha uma alta patente do exército, que certamente
compreendendo o que estava acontecendo, acenou para que eu me aproximasse do
veículo. Quando cheguei bem próximo, ele sorriu para mim e disse:
“---meus parabéns rapaz, por ter
sido aprovado no vestibular. Este velho coronel, tem permissão para passar
agora ?”
Balancei a cabeça agradecendo
pela gentileza de como fui tratado e vendo o caminho livre, apitei bem forte,
dando passagem ao jipão, antes que outro veículo surgisse pela transversal
do Pelourinho.
x.x.x
Nenhum comentário:
Postar um comentário